Improvisos
sábado, 9 de dezembro de 2023
Contagem*
domingo, 4 de junho de 2023
Noite no Marquês
pego no livro mais próximo e leio
o rasgar côncavo da lua na página
e o pequeno golpe no dedo
que cicatriza o gesto
é impossível
escapar
as coisas que são ditas antes
alcança esse medo sem querer vencê-lo
apenas senta-te com ele e conta-lhe
as muitas vezes que o viste abeirar-se
da liberdade
passar a outra coisa
e
a outra coisa que é sempre outra
e que sempre vem
anuncia-se com o passar do momento
e inaugura a eternidade
compomos passos
titubeamos
o oceano não se pôde abraçar inteiro
nada se pode abraçar inteiro
entretanto
já resvalou o momento
e move-se o chão
e
já não estamos aqui.
segunda-feira, 23 de janeiro de 2023
a companhia
o teatro acabou
depois ele, a velha chinesa
morreu medicada em casa do filho
o novo palco é agora do outro lado da cidade
os dedos dos actores tremem mais agora
as cores de plástico parecem gritar
a sua inutilidade
as cadeiras vão vagando
a incerteza insinua-se, fria,
o gesto falha o contorno do lábio
ou será a boca que já não se oferece
ao disfarce do tempo em laços e máscaras
é insuportável pensar na sala vazia
são os últimos
a sua arte é a última
na grande mesa da única sala comum
ninguém se atreve a tocar na carta solene
alguém pede ajuda com um botão
alguém traz o chá
vem o encontro no meio de todas as vozes
brilha o pó que se anichou nas rugas
é a última performance
todos pedem silenciosamente
que os matem
sexta-feira, 9 de dezembro de 2022
kaleidoscope*
foste um dia o rapaz maravilhado pela estrela cadente
e o homem que caía desamparado no chão da terra
e os olhos que leram e se arredondaram
e o grito que todos damos
quando tudo se acaba
ou inicia.
*ao Ademar, sempre.
domingo, 9 de outubro de 2022
a vantagem da loucura
é não sentirmos o frio da água no mediterrâneo
nem termos embarcado com bilhete maravilhosamente moderno
é termos já ido para lá do tempo e do espaço enquanto esperamos o comboio
que nunca pára
se silvam os obuses com promessas
se gemem as mãos das crianças nos fios de ferro da última coleção
nada disso sentimos porque já fomos para mais longe de todas as novíssimas galáxias
o universo está morto mas deixou-nos todas as ilusões de herança
a terra suspira e espera
sexta-feira, 9 de setembro de 2022
segunda-feira, 15 de agosto de 2022
Tres Esquinas
Por pouco tempo, parecias dizer
Já se anuncia o cinzento nos teus olhos
O assombro momentâneo não te ruborizou
Mas, estremeceste, brevemente,
E agora são minhas as tuas tardes
A passar tangos pelas ruas de Montserrat
segunda-feira, 28 de março de 2022
arquipélago
talvez sejas
como as águas do mar Egeu
vagam em sentido contrário ao tempo
antes de se afundarem no seu próprio sal
às portas do oriente
na casa vazia
ouve-se a noite na montanha
e as ilhas abrem-se como braços
e fecham-se como colos
somos imortais
terça-feira, 1 de março de 2022
afloat
flutuava como um corpo esquecido
mas a esquadria revelou que era Turner
uma aguarela de Turner negra de tanto mar
à deriva
uns passos mais à frente
do lado do mundo que passeia
a serpentina presa na madeira do Tejo
permanecia imóvel ao dia
com a dureza de quem ata
talvez pela última vez
os destinos da tarde
recuei
é preciso revisitar os passos perdidos
e resgatar as mãos de Turner
e da criança alegre no instante circular
de tirar o rolo inteiro da serpentina do bolso
dar-lhe uma coroa pagã e ligeira
uns decretos de cores
histórias por contar
quinta-feira, 20 de janeiro de 2022
terça-feira, 18 de janeiro de 2022
The broken nose*
are we ever brave enough
to give ourselves completely to this exact moment
that we would perish
not knowing anything about boundaries
the borders of any gesture
the frailties of undivided attention?
life would reenact itself perpetually
extending its galactic arms around us
talking about the other Coltrane
and the need for a change in view
what is the change that would have
stopped you from falling
it is now the time after that
the day was sunny,
just like you.
*In loving memory of
William Louis Mills.
domingo, 26 de dezembro de 2021
Penhasco
há na ilha um lugar
frente a um espelho sujo
frente ao mar que afoga os seixos
entre vigílias e tempos mal medidos
a posta restante
do teu olhar
o que sobra da roupa encharcada
na luta de outrem?
quem beija a palavra certa
que faz Caronte esperar um pouco mais?
conto eu a história por ti
rasgando as noites
nas tuas ondas
sábado, 25 de dezembro de 2021
Conjunto de seis copos
nunca ninguém bebeu por aqueles copos
estavam guardados para uma ocasião especial
passaram os anos e ninguém entrou para celebrar
seis cores juntas e por isso mais belas ainda
um conjunto que parecia chamar a sede
dos mais doces vinhos
soube-se que foram vendidos em perfeito estado de conservação
minuciosamente resguardados de toda a perturbação:
pó, sol e as mãos sujas
do imprevisto
correctos, limpos, inteiros
nunca ninguém lhes poderia apontar uma falha
(a tristeza não mancha)
(o vazio não quebra)
talvez não tenham sobrevivido depois
algum excesso, algum descuido
e o tempo
o tempo
tiveram o mesmo destino afinal
todos
terça-feira, 14 de dezembro de 2021
quinta-feira, 9 de dezembro de 2021
Ossos*
um sopro mais e
rodopiamos no salão grande
da eternidade
o vento leva-nos
com as outras poeiras
e nem as estrelas já
nos distinguem
na roda
nada mais há
senão a eterna ficção
e o vago rumor
da memória
mas hoje
apenas hoje
ajeitas os óculos
e estremeces um pouco
para me desejares boa viagem.
*Para o Ademar, sempre.
terça-feira, 7 de dezembro de 2021
morte em Veneza
sábado, 30 de outubro de 2021
Branco
Talvez não seja bom afinal
Dormir as horas todas
Em cama lavada
Dobrar as noites
Em pregas exactas
E ter tudo pronto para
Amanhã.
segunda-feira, 26 de julho de 2021
A oliveira*
talvez o espaço e o tempo sejam afinal
detalhes, arabescos de um longo e impensável logro
somos todos a borboleta branca que veio dançar em roda
e dispôs as pedras em círculo na pele que lhes pertence
somos a orla do mar e o fim da terra
a areia amarga e o sol inútil
quando grita a ausência
pego no cisne de louça
e sinto a asa pintada
intacta
intacta e alegre no seu roçar alado
da vida a começar no olhar atento da mãe
tudo o que uma vez foi
ainda é
* À memória do Márcio
domingo, 27 de junho de 2021
fluxo
domingo, 13 de junho de 2021
mecânica
esses números que a máquina devolveu dizem
que não é possível voltar atrás para afinal
regressar ao lugar onde a vida
não se repetiu
sábado, 22 de maio de 2021
segunda-feira, 29 de março de 2021
all night
sabíamos que éramos imortais
a madrugada era sempre o novo dia
todos os prazeres e mistérios
inesgotáveis
de tanto serem sentidos
abertos como a boca que aprende a sede
e nós contentes na surpresa de não morrermos
na louca corrida que era sairmos para a rua livre
éramos apenas o nosso corpo
e alguns sonhos
domingo, 21 de março de 2021
A garganta
para medir a distância entre os sulcos
teria de espraiar os dedos um pouco
abri-los em leque numa noite de Verão
quando engoles café amargo e ilusão
sigo os trilhos, perco-me
regresso ao toque e a mim
o gesto é proibido
o tempo é um garrote
abrem-se todas as fronteiras
na ponta dos meus dedos
talvez tenhas pousado o café
talvez te tenhas armado de silêncio
un corps entier
entièrement à l'écoute
se acaso viesse a manhã
ouvir-te-ia contar
paisagens impossíveis
de conter
valor
na venda do recheio
todos os copos de vidro fino estavam intactos
as porcelanas e cristais nas suas devidas montras
as rendas habilíssimas de todos os sábados e domingos
imaculadamente à espera
a terrina de decoração
as garrafas de decoração
a vida de decoração
tudo conservado
imaculadamente morto
bebo um café clandestino
enquanto espreito pelo postigo
mãos rápidas repõem o dia
tudo será destruído
"já ninguém quer"
dizem
com as mãos sujas
abrimos uma garrafa
brindamos ao fim do tempo
estas linhas gravam apenas
o gesto que limpou do canto da boca
a doce gota de vinho
sábado, 13 de março de 2021
icu
fez as contas ao dia
morrerão todos os que reanimou
morreram todos os outros
limpou uma e outra vez
o que as vísceras lhe colaram ao rosto
como se entubar fosse entubar-se
assomou à janela, fechada sobre o mar
um canto longe estremeceu-o
mas a ilha não se mexeu
mais logo não dormirá
o sono é um alento desmerecido
afago de quem é próximo dos deuses
quarta-feira, 3 de março de 2021
Y
reclinado assim
nesse pouco de sono
arrancado à infância
pareces os instantes
que o Tempo deixou
perder
um sonho curto
e revolto
no mar alto
das tuas noites
quinta-feira, 4 de fevereiro de 2021
Passageiros
¡Volvamos a lo de antes!
¡Dame el brazo y vámonos!*terça-feira, 2 de fevereiro de 2021
Os malabares da Tierra del Fuego
quando gira
colorida e exacta
a bola gasta do malabar
peço à luz vermelha do semáforo
que lhe siga a rotação entre terra e ar
que proíba todo o movimento que não seja livre e belo
decretemos
toda a pressa será Injustificada
ordem para deixar-se estar
a vida toda numa rotação
entre terra e ar
cumprimos
com o olhar calado
o fogo que nos move
Lisboa,
cruzamento da Gago Coutinho com as Américas.
terça-feira, 26 de janeiro de 2021
Dobra
está para começar
já terá talvez começado
o corpo lança-se pelas lajes partidas
nos largos passeios da capital do Sul
uns metros em Carlos Calvo e logo Entre Ríos
a montra grande do café alberga os habituais desconhecidos
a montra banal da loja de utilidades reconforta
quando a respiração espreita os vales
e o corpo se lança no medo
de tudo ter acabado
mas a porta entreabre-se
move-se com os meus olhos
é aqui
o desejo todo refreado
apura-se para dobrar a última esquina
e deixar o mundo conhecido para trás
quarta-feira, 9 de dezembro de 2020
Azul*
de zamba
azul da manhã
em que a chuva não parou
não a deteve a estranha que me avisava
não me deteve a ponta metálica do guarda-chuva
toques insistentes de quantas Parcas que me enviaste?
seguimos, segui viagem até ao cais
repeti o passo pisando a areia do ano em que te perdi
ou a de ontem na praia da Ribeira das Naus
onde naufragam sonhadores e inquietos
azul de zamba
azul da manhã em que sabemos
que apenas passamos
y
te llevó la tarde
rumbo a su misterio
*À memória de Ademar Ferreira dos Santos,
nascido num dia como o de hoje.
domingo, 6 de dezembro de 2020
Y
quantas vezes te fotografei o sol escondido
nos braços leves da chuva
bailando os dias
sem corpo
e quantas vezes me sentei contigo a desenhar
os dias que Goya passou em Londres
entre trevas domesticadas
e anjos azul-mar
vens de um longe
que não sei medir
mas sei amar
Clarão
luz
ao longe
quase fátua
que ninguém viu
assim somos todos
assim são os nomes
que os séculos sopram
e os livros graves encerram
assim as linhas de sangue
e a fotografia de dias felizes
todos um dia mereceram uma linha
que o cosmos sempre apaga
é noite ou é dia, tanto faz,
tudo conspira para nos sossegar
esconde-se o silêncio, o ricto final
e a inutilidade das esforçadas marés
o pássaro de há pouco que já não faz sonhar
os grãos de areia da tarde mais memorável do mundo
depois de ele acabar
esconde-se de quem não viveu que não havia mais vida
que aquela atenção profunda ao som metálico da passagem das horas
que nunca passaram nem voltarão a passar
luz
tão longe
terça-feira, 15 de setembro de 2020
Le Rideau Rouge*
je refais mes pas
je le savais bien que
en traversant le Canal Saint-Martin
juste après le pont
quelques pas de plus
le rideau s'ouvrait
rouge profond et flamboyant et
juste avant la grande scène
tes bras et ta joie
ta joie entière!
comme si je revenais d'un trop long voyage
comme si le moment-en-scène était là,
le roi-temps et sa reine,
toi
et ton là-maintenant
de grande magicienne
Mesdames et Messieurs!
voici le mystère.
*À la mémoire d'Angélica Chemla.
segunda-feira, 7 de setembro de 2020
Orfeu
há um espanto nos velhos
vêem redonda a vida que estava ali
o casaco desordenado num canto se
tivessem entrado sem perguntas em alguém
a cicatriz de uma queda no mais belo penhasco se
tivessem aberto o mapa como uma criança
os olhos cansados de não dormir se
tivessem ido até ao fim do medo
o fim das amarras
o começo da viagem
e da nuvem que baila os ventos
se
segunda-feira, 31 de agosto de 2020
The End
não saias nunca antes de todas as luzes do cinema se apagarem
nos créditos está o nome da canção que te salvará
e quando tropeces na certeza de que já não há nada mais a fazer ali
esse minuto a mais, é esse que a morte te desconta por distraída
com o que farás ainda numa sala onde tudo já acabou
quinta-feira, 27 de agosto de 2020
Moldura para T2 com vista
quinta-feira, 13 de agosto de 2020
Fonte
estava inscrito no cântaro que sim
que se pode sentir de todas as maneiras
pegar na asa e sentir-lhe o barro sujo da fome
beber a água fria e desejar o sal lá longe
seguir a gota que se escapou dos lábios
e perder-lhe o rasto rapidamente
com o cântaro pousado
despem-se devagar as mil maneiras
de nos emparedarmos
as frases fósseis e a certeza morna
o mundo-lego triste da infância sem liberdade
a gota desapareceu toda no mundo em mim
humedando o eterno senso
da vida
segunda-feira, 13 de julho de 2020
Sobras
pedaço irregular de papel prensado que acolhe e conforta
é a mesma hora e a mesma brisa e a mesma noite de Verão
recolho as palavras que ainda sobram para comer a dor
e entro dentro de casa.
sábado, 4 de julho de 2020
877
essa parte do teu sal que não se perdeu e entrou em mim
essa parte de mim que não se perdeu
coube-nos essa sorte
e este fim.
quinta-feira, 2 de julho de 2020
lama
sexta-feira, 22 de maio de 2020
Dez*
conto-te ou não?
os que ainda estão
fazem contas à vida
apanhados na globalização
do silêncio e o do espanto
confinados ao momento
e à condição
a partir de hoje
conto-te ou não?
já não me chegam os dedos das mãos
para dizer a tua ausência
já não me chegam as saudades para tirar-te
do fundo de todas as coisas que rasgam a calma
conto-te
tudo é o mesmo ainda
mas mais calado
mudos a olhar o passado
e nem o diabo nos quer a alma
nem os deuses nos querem criar
a partir de hoje
dizem que tudo mudou
na passagem do momento
conto-me a mim
e a ti
*Ademar Ferreira do Santos, 9/12/1952 - 22/05/2010
segunda-feira, 9 de dezembro de 2019
Meio do caminho
meio movimento
como faz o comboio
quando vem atrás antes
de se lançar no ferro seguinte
metade de tudo se assim se lançasse a vida
retrocedo, sigo
sigo no encalço do que foi
passos perdidos cujo rasto serve de síncope
metade de ferro e sonho ou de corda, dizia o poeta
até onde se prolonga a curva das linhas da tua mão
a avisar-me da cena que Pasolini não pôde filmar
páro
no meio exacto de tudo
segunda-feira, 16 de setembro de 2019
o trâmite
supinamente inconcebível
que se arrastem assim as asas
do olvido
como corpos celestes amargos
que depois de vagar imensos
se detivessem
no raio de sol fortuito
que nenhum deus a si nega
a noite é eterna e
há apenas um caminho
o dia é dos deuses
e deles são todos os édens
e neles moram as histórias
e o caos do mar
e da memória
o trâmite é simples
as asas levam o olvido
no bater imperceptível
do tempo-mundo
na noite que é eterna
no caminho que é único
não há registo de
humanos desvios
nem cartografias
do perdão
apenas aos deuses
se lhes permite regressar
insuportável portanto
ilegal, inconcebível!
que se encontre
essa linda pena
vagante
assim perdida
no universo
quinta-feira, 6 de junho de 2019
mensagem
demoro-me
não abro logo
fecho os olhos
sobre a boa nova
na carta fechada
as bordas correm
para os meus dedos
e deslizam pela memória
inacabada
quarta-feira, 22 de maio de 2019
9*
quarta-feira, 1 de maio de 2019
dia primeiro
sábado, 27 de abril de 2019
improviso para resgatar Alfonsina
incessantemente me leva
a ser todo o mar
segunda-feira, 17 de dezembro de 2018
los perros
não importa ao que venho
troco a carta do coronel
por trinta minutos de ficção
troco a história de um país
pelo coincidir das nossas mãos
abrimos uma pizzaria apenas
para podermos mandar os convites
Amanhã, A Grande Estreia!
Amanhã, Começamos
tudo nos é dado desde agora
permitido, por meia hora
chamamos os cães
montamos os cavalos
está uma montanha inteira
há meia hora à nossa espera