segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

Meio do caminho

retroceder
meio movimento
como faz o comboio
quando vem atrás antes
de se lançar no ferro seguinte
metade de tudo se assim se lançasse a vida

retrocedo, sigo
sigo no encalço do que foi
passos perdidos cujo rasto serve de síncope
metade de ferro e sonho ou de corda, dizia o poeta

até onde se prolonga a curva das linhas da tua mão
a avisar-me da cena que Pasolini não pôde filmar

páro
no meio exacto de tudo



Para o Ademar, no nosso dia.


segunda-feira, 16 de setembro de 2019

o trâmite

absolutamente ilegal e
supinamente inconcebível
que se arrastem assim as asas
do olvido
como corpos celestes amargos
que depois de vagar imensos
se detivessem
no raio de sol fortuito
que nenhum deus a si nega

a noite é eterna e
há apenas um caminho

o dia é dos deuses
e deles são todos os édens
e neles moram as histórias
e o caos do mar
e da memória

o trâmite é simples
as asas levam o olvido
no bater imperceptível
do tempo-mundo
na noite que é eterna
no caminho que é único

não há registo de
humanos desvios
nem cartografias
do perdão

apenas aos deuses
se lhes permite regressar

insuportável portanto
ilegal, inconcebível!
que se encontre
essa linda pena
vagante

assim perdida
no universo



quinta-feira, 6 de junho de 2019

mensagem

por vezes
demoro-me
não abro logo
fecho os olhos
sobre a boa nova
na carta fechada

as bordas correm
para os meus dedos

e deslizam pela memória
inacabada

quarta-feira, 22 de maio de 2019

9*

a tombar
só a pétala leve do jacarandá
ou a roupagem da normalidade
um corpo inteiro de sede, não
um corpo inteiro de ser, nunca

quem te roubou sabe 
que nada sobra
que nada fica

caminhaste para lá 
dos dias
da bela noite
segues sozinho comigo
cozinhas com a minha fome
e bebes dos meus sonhos
e não há truque que não tentes
para me fundear os olhos no horizonte
caravela íntima 
cego tropel 

o sol dobrou a última linha
grão-luz apenas antes
do eterno olvido


* à memória de Ademar Ferreira dos Santos

quarta-feira, 1 de maio de 2019

dia primeiro

ao cravar-se a garra
recolhemos o corpo no
doce silvestre
de ontem
rasto silente
nunca anunciado

corremos os dedos
por toda a história
todos os antes e depois 
de absolutamente tudo
e nunca achamos
a garra que sem memória rompe
a vida toda

nas mãos
o sangue que assoma
a pele rasgada
o momento 

sábado, 27 de abril de 2019

improviso para resgatar Alfonsina

és exactamente como a onda que
incessantemente me leva
a ser todo o mar