quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

poema para Lorenz

a borboleta regressou incólume do Texas
para pousar na haste improvável da minha mão 

o rebordo do copo trémulo rasgou levemente os lábios 
este é o sangue mil vezes derramado em mim

o silêncio fundo das palavras foi caindo sobre as coisas
e disse cacho em vez de amor, vide em vez de dor

o final da noite voltou e com ele trouxe a manhã
abre-se o casulo infinito algures no Brasil






quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

rota


da viagem, trouxemos dois cravinhos-da-índia
e a muita luz que os olhos não sabem disfarçar
quando embarcados se deixam naufragar

terça-feira, 18 de dezembro de 2012

navegações


e se como Ulisses fundássemos Lisboa
a que porto nos levariam os dias



sábado, 15 de dezembro de 2012

tango nosso

tango imenso esse negro tango nosso
abrem-se cercas e lentas planícies
para que colhamos sem pejo
as flores que afogam os rios
nas gargantas emudecidas

fero e negro tango de não volver
ao tempo em que temos ainda
vinte anos para perder
em flores que desfolhamos
no acaso conjunto dos dias

tango nosso esse baque surdo
que cala a nua e negra terra 
e do eco longo e fundo
faz-se de um tempo
mundo




quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

cartografia


depois do cabo da terra
fica o fim do medo
dobramo-lo

chegamos ao outro lado
sem compasso nem glória
por globo os nossos olhos
madrugados

arredondamos os dedos
e buscamos na manhã
o último fio de mar
dobramo-lo

passamos embarcados
pelas ilhas do cabo do sonho
aonde se pode enfim amarar
madrugadas

depois do cabo do mar
fica o fim do medo
amaramo-nos


sábado, 8 de dezembro de 2012

Para o Ademar

dois anos depois
percorro as margens do rio
e sento-me com todos os sinais de ti
que passas sempre, diz-me a corrente
que estás perto, diz-me o vento
que chegas, diz-me a terra
e eu respondo com palavras
que talvez conheças
l'amour autrement
e talvez te ouça
quando rindo clamas 
que é todo o mesmo!

sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

Para a María

sobre um fundo cinzento
a asa voa mais rubra
perto vaga,
perto vem,
pousando aqui
corpo de manhã livre
pousando além
corpo de dia inteiro

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

beira de mar

estranhas quando as minhas mãos te servem de búzio
ouve-lo de olhos postos nas ondas que parecem chegar
marés ainda brandas que despojam se perto andam
estranhas que os dedos se abram ao vento
e se deixem levar até serem rumores
que como marés despojam
porque perto andam


segunda-feira, 19 de novembro de 2012

distância

há quem cante canção alheia
para melhor calar a sua 
isto diz quem ouve 
o que nela soa 
em peito seu

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

a tecla

convenceu o suicida a poupar ainda algum tempo
para o solo de piano que o arrebataria 
rasgo de momento antes da queda
voo altíssimo para lá do chão
aonde tocam agora rasas
as mãos

domingo, 28 de outubro de 2012

2x4

esta mesa é quadrada ou talvez
quatro bordas de infinito
fosse mais exacto

é necessário que venhas
que a meças com as mãos nuas

é preciso que saibas
quanto medem as palmas
quando estão inteiramente abertas

e que espaço vai tomando
a oscilação dos dedos 
quando estremecem
junto aos meus

só então saberás
em exactas pulsações
da imensidão desta roda

sentemo-nos

domingo, 21 de outubro de 2012

para ti

são muitas as formas que tomas
sem que nelas possas durar

já ruiu a casa 
já desabou a mão temente
nenhuma sombra
nenhum possível

onde é que te gravei a voz
que te ouço sem me ver

onde é que te guardaste
os gestos no corpo, onde estão
que te dispo tão longe das minhas mãos

leva-me ao momento exacto da partida
da moldura breve do teu rosto faço
plano mais lento que a vida
abrem ainda as portas

leva-me ao sítio exacto em que me deixaste
que também se colhe do nada
pão, corpo e semente

são muitas as formas que tomo
sem que nelas possa durar
  

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

o barco

escondem-se as minhas penas
por detrás dos teus olhos cuidadores
e é dali que me espreitam uma ou outra vez
e é dali que são quase belas dentro desses azuis
a que chamas por meus lábios o mar dos teus olhos



quarta-feira, 17 de outubro de 2012

cantiga

no voltar da saia
vi o rubro outono 
no teu rosto bailar

se chega o inverno
hemos de nele
maio atear

domingo, 14 de outubro de 2012

a saia verde

reconheces-me as mãos
no volteio da linha
nos remendos que crescem
neles reconheces a saia 
ondeia em voltas novas
novas de teus olhos amadas
ainda que nos rasgue o tempo
ainda que não mais bailemos
é verde e nova, a saia

mais tarde

vem um momento e não anuncia
que traz o esquecimento
toma forma e alento
e por mim diz
que passou


terça-feira, 9 de outubro de 2012

do vocabulário

nunca se despedaçou
porque não conhecia
o verbo


quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Um


para desmaio de todos os deuses
sombra alguma sol algum
nos atravessou o peito 
este lugar de culto
é inviolável


terça-feira, 2 de outubro de 2012

do esplendor

acontece algumas vezes
em pleno decurso de vida normal
que as asas madrepérola de insecto
que entretanto tivesse pousado sem pressa
compreendam na perfeição o olhar que as deixa viver



perspectiva

alcançava nesse dia a vista muito mais do que era costume
debaixo dos telhados de prata, alguém reparou no friso quieto
era gente lá longe na colina, gente indistinta e tão pequena
que seria impossível dizer se alguém calava um olhar

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

o labirinto

dobando o fio, contou teseu a façanha
o único golpe,
a amada longa fama futura

dobava devagar, enternecidamente
amando já o temível monstro
que ao morrer o consagrara
e dobando, do labirinto contou:
esquinas afiadas, carnívoras!
sombras vindas do fim do tempo,
ecos de torturas infindáveis,
e finalmente a besta, o medo
e o único golpe,
implacável

dobado já todo o fio,
pousou o novelo refeito
nas mãos crédulas de ariadne
e embarcou sereno no mesmo mar
que nessa noite receberia o fio que ariadne foi deitar

desfê-lo devagar, amorosamente
contando o que sabia da longa dor presente
esquinas afiadas e carnívoras
sombras do fim do tempo
ecos infindáveis
o golpe lento do medo
a partida das negras velas
a partida incessante das negras velas

desfeito já o fio
desunidas as pontas
pôde ariadne embarcar

façanha maior que o mar

sábado, 15 de setembro de 2012

15 de Setembro

sairam para dar nome ao tempo
que passa lento e curioso
que gente será esta
que assim sonha?


sexta-feira, 14 de setembro de 2012

a cama

a vertigem é a vontade inadiável da terra
deitados, vemos melhor os pássaros


quarta-feira, 12 de setembro de 2012

Un

rationnons l'éternité en
pedazos de hambre


terça-feira, 11 de setembro de 2012

rsvp

desmerece o verso a pulsação
que realmente segura a mão?

domingo, 9 de setembro de 2012

les marins sans quart

cela ne tient pas
je te démontre
voici du sable
il s'écoule
il s'en va
voilà,
rien!
c'est simple
je t'ai montré
comment il s'en va
tu le retournes mais
cela ne tiendra pas
car il s'écoule
et il s'en va
et si je le retourne
si de mes mains je le fais
que crois-tu! qu'on tiendra
qu'on ne s'écroulera pas?

regardons-le ensemble
à la fin tu me diras
à la fin je te dirai
si jamais

la vague




interiores

fechou-se sem alaridos num jardim aprazível
tratou das flores e dos espinhos
cuidou que houvesse muito sol
e alguma chuva
paz contente
paz contente
paz contente

aqui e além
uma ou outra vez
um voo supreendente
que bela sombra, o que será?

e antes que a sombra com o sol o dia jogasse
e antes que a álea com o voo a vertigem tomasse
fechou-se sem alaridos numa casa aprazível
e correu as cortinas todas até ao fim


quinta-feira, 6 de setembro de 2012

a relíquia

raspando um pouco
sai a tinta e vê-se o barro
ambos são autênticos

raspando o barro
vê-se a mão

essa que mata
amando


terça-feira, 4 de setembro de 2012

nudez

pouso a misteriosa partitura sobre os joelhos
passa mais devagar o tempo assim desconcertado

da necessidade

podendo ser de todas e infinitas maneiras
não pôde ser de nenhuma outra
será assim a beleza?
certa é a maneira minha da beleza tua
como certo é o mundo que nela navega
será assim o amor

sexta-feira, 31 de agosto de 2012

verso velejador

cesse tudo menos o instante da partida





segunda-feira, 13 de agosto de 2012

postal ilustrado

as noites em que te chamo o olhar
não têm nome nem data
como sabes
é irrelevante ser domingo
ou estarmos no ano em que fomos
felizes

domingo, 15 de julho de 2012

poema para Campos

o que farão da tua vida mais uma vez assim disposta
dessa maneira gentil de existir sempre tanto
e de não caber em nenhum rosto
a arca abre-se ainda e 
no fundo, procurando bem
está o papel de folha de estanho 
que embrulhou outrora o chocolate desamparado

também a vejo daqui, a pequena suja,
já acabou de comer o chocolate e alisou o papel de prata
para nele confeita poder escrever :
tenho fome

vou à janela e passo eu.


quinta-feira, 12 de julho de 2012

jangada de papel

deixo-te esta carta para te dizer que nada tenho a dizer que valesse a pena ser dito. as coisas são o que são, a vida é o que é e eu não fujo a esta régua nem a este esquadro, que aliás usava com gosto em criança, sonhando uma vez ou outra com formas mais dúcteis e comestíveis. não vou abrir aqui nenhum baú porque não tenho baús, já esqueci quase tudo o que não valia a pena lembrar e pouco vale a pena lembrar, talvez só    aquela vez em que a mão me escapou e do ângulo imperfeito do esquadro me saiu um pássaro que voou imensamente assustado e tremendamente maravilhado por cima das nossas cabeças. da tua e da minha, já não era eu muito criança, nem tu, e ele era novo e verde e laranja. mas sabes, a vantagem do esquadro é que ele não deixa fugir por muito tempo a mão dos noventa graus que estão sempre certos, desde que a mão não saia do ponto da verdade. a desvantagem, dirias tu, se eu te ouvisse em mim, é que o infinito começa nesses noventa graus, mas eu não te ouço, tens sorte. deixemos de lado este esquadro, antes que te lembres dos cento e oitenta graus da utopia amorosa, sigo naquilo que tenho para te dizer, isto é, nada. já lá vão algumas palavras, é verdade, mas até para nada se dizer é preciso gastar tinta e tempo, uns instantes, como aqueles em que parei a olhar para ti e me parece que decorreram muitas e belas vidas inteiras. quando assim é, não podem os dias, cheios de enfadonhos minutos , alcançar o momento em que o pássaro volta e o voo se parece com o estremecer dos teus lábios e por essa razão não podem os dias nada e muito menos os meses e os anos e os meus medos, e saltou-me outra vez a mão do esquadro, é da porcaria desta mesa que não é uniforme ou então é o esquadro que tem defeito. dizia eu que não podem os dias nada e agradeço-te por nada teres dito enquanto me ouviste a querer dizer-te mais do que sou capaz e sempre menos do que me exijo quando pressinto os teus pássaros em pleno e desconcertante voo. se soubesses, se soubesses como é implacavelmente tarde. mas as tuas metáforas são outras e pegas contente nos óculos por pensares que estará sol e que me poderias quebrar o esquadro com versos se alguma vez entrássemos em guerra aberta pelo meio dos dias subitamente coincidentes com o sul para onde vão os pássaros, esse sul que tu conheces incertamente bem, como eu. é mesmo implacavelmente tarde, deveria ter parado ali a carta, não há nada mais forte do que um advérbio bem colocado mas, não o fiz e lá deixei a mão vagar um pouco mais, nada mais que um pouco que diminui, vai diminuindo, até acabar.
como papel
como mar

segunda-feira, 9 de julho de 2012

num restaurante à beira-mar plantado

hoje, o estufado é diferente
pedimos desculpa mas o Coelho comeu 
as batatas, as cenouras e as couves 
que estufavam juntamente com ele 
hoje, talvez seja
batatas, cenouras, couves no Coelho
tudo bem estufado, isso não mudou

hoje, e excepcionalmente por ser hoje,
pedimos desculpas mas a panela comeu 
o Coelho com as batatas as cenouras e as couves
que estufavam já dentro dele
hoje, talvez seja
lume vivo debaixo das vossas mãos
tudo bem justificado, isso não mudou

a-paguem 
e voltem sempre


domingo, 8 de julho de 2012



.


sexta-feira, 6 de julho de 2012

poema para Caeiro


a primavera veio entretanto
e olhando para trás espanta-se
com a falta que lhe faz não estarmos
para contar a história da flor por nascer




segunda-feira, 18 de junho de 2012

dez

cinco sílabas
se as contássemos
duas mãos
que seriam quatro

e uma só

se as tivéssemos

amealho sonhos
num cofre de pedra

cubro as dívidas
com o ouro da mina
sem mapa nem terra

troco pão e água
por um pouco de chão
onde te possas sentar
a contar palavras

das sílabas
cuido eu












quarta-feira, 13 de junho de 2012

post-it

enquanto acho e procuro
e por esta exacta ordem
uma cadeira onde sentar 
o espanto da Beatriz Alice
enquanto acho e procuro
ainda pela mesma ordem
uma moldura conivente com
sombras de terra e de sol
enquanto isso
enquanto tudo isto
com a cadeira já arrumada
e a moldura desfeita pelo vento
vem um dia lá mais para a frente
dizer-me que alguém ainda
se lembra

domingo, 10 de junho de 2012

dez e meio de junho de dois mil e doze

que farei deste dia, José?
as tágides não forjam espadas
e o ferro tem hoje caminho curto
acabada a tinta que o fez correr mundo
a revelar manhãs ao azul profundo

farei talvez o almoço
com os cravinhos-da-memória
em lume espevitadamente sereno

és servido
 


terça-feira, 5 de junho de 2012

encontramo-nos no cais, como sempre, no momento desejado de uma partida ou de uma chegada
este foi o encontro que decidimos sem nunca nos termos delas socorrido, das palavras,
essas que todos os dias albergo como viajantes que de ti me trazem novas:
foste visto aqui.

segunda-feira, 28 de maio de 2012

o lado esquerdo

situemo-nos
encontremos uma rua
fios que atravessam o passeio
e um homem soberbamente distraído
depois, continuemos nessa mesma rua larga
e um pouco mais acima por volta do meio-dia
reconheçamos a mulher que tropeça todos os dias
nos mesmíssimos fios que nenhuma mão teceu
despojos de um deus-menino-homem
sobras vivas que o destino ignora
sonho soberbamente atento
à sua própria queda

estamos no lado esquerdo
de uma mesma rua


terça-feira, 22 de maio de 2012

verso para me achares

veio uma rosa parar-me às mãos quando eu distraída olhava o mar



terça-feira, 15 de maio de 2012

incredulità

disse-me Tomé que sempre acreditara
que sabia sem sombra de dúvida
que o assombro não era de fé
mas de carne, sangue e amor
Ele, ali, aberto
incredulità!
gritou

disse Tomé que não tocou
que fechou os olhos 
e Ele entrou

eis o mistério
esse sim
totalmente impenetrável
deus maior de humana mão




domingo, 6 de maio de 2012

evidências

não há segredo nem explicação
as coisas são o que são:
todos os sentidos
mais a incompreensão
e talvez o esplendor do amor

basta um sopro de terra
o assomo da manhã
o cheiro húmido
do azul

basta um ou outro som
podem ser palavras
canções de lavra e fome
canções que transbordam
de lábios cheios

basta um eco devolvido
e entregue em mãos
e pelo meio as montanhas
e os desfiladeiros abismais
e o caminho que há-de chegar

basta ouvir o silêncio que há
quando não há mais nada a esconder



sábado, 5 de maio de 2012

cicadidae

rasa o chão
trepa lentamente pelas ervas
abraça-se a um tronco
e toma a terra toda
numa evidência
equidistante
baque longo
e quente
o canto

ouve



sábado, 21 de abril de 2012

il y aura des conséquences
ce pas inévitable apportera
encore d'autres
un petit pas sans métaphore
un pas pour aller chercher du pain
aucune métaphore, juste un couloir
la cuisine dans l'ombre, l'armoire
et le beurre et moi soudain
dans tes pensées
et alors
et alors
ces autres pas deviennent le premier
chacun à la fois dans le désordre
le plus complet
comment te dire
l'ombre et ce parcours,
ce désir soudain,
comme avant
toi et ce pain que je coupe
et qui t'appartient
ton corps qui se lève
ton corps que je vois d'ici
de cette fenêtre impossible
de cette maison invisible
de mes yeux d'ombre
et de faim
tes pas en avant
puisque tu vas simplement
chercher du pain!
me longent
m'oublient
me tuent

je finis de manger
il y a des traces de beurre
sur tes lèvres

terça-feira, 17 de abril de 2012

il n'y pas de différence
entre la pierre qui ne bouge plus
et l'oiseau qui s'envole effrayé
seul le poing se distingue
ouvert et tremblant
d'humanité

terça-feira, 3 de abril de 2012

coube-lhe em sorte,
diz-se do que vem vindo

aceitar o caos é afinal
próprio de deuses



sábado, 31 de março de 2012

los caminos

je ferme la porte et je m'éloigne
je ressens chacune de tes courbes de ce côté
je sais comment tes seins s'insurgent contre le bois
je sais comment tes yeux me croient l'océan
je connais tes fleuves et tes coins

je marche

j'aime beaucoup les impossibilités qui t'illuminent
je les allumerais volontiers rien que pour voir cet éclipse hors temps
je les bâtirais avec tout mon silence pour le regard qui habite tout ton corps
et je finirais par t'oublier à chaque instant pour ainsi t'aimer

finalement



quinta-feira, 29 de março de 2012

dimensões

hesito em dizer a tua altura
os palmos que construo no ar
conhecem o silêncio das raízes
e quando abro impossivelmente os braços
cresces como a margem de um rio pequeno
que atravesso sempre ao entardecer
antes que a noite tudo confunda

a tua altura talvez seja
as pegadas que vou deixando na terra molhada
os frutos que vou colhendo das árvores
e o momento em que os abro e amo

a tua altura é ser dia
e estarmos nele

quarta-feira, 28 de março de 2012

a descer, todos os anjos

é apenas uma ponte agradável envolta em sombras solarengas e degraus cordatos
um pequeno trajecto em arco entre uma e outra margem
são apenas passos mais ou menos longos consoante
a demora da pedra à nossa passagem
o anjo apenas ajuda a subir
para melhor nos ver cair



terça-feira, 27 de março de 2012

le soir

je n'allume pas
il y a des choses que la lumière doit ignorer, comme
le morceau de pomme que l'oiseau a laissé tomber
(qui s'attend à un cadeau des dieux?)
je n'allume pas
il y a des choses que seule l'obscurité peut bercer, comme
l'ondulation de deux corps sur un même chemin
(qui s'attend à la circumnavigation de nos pas?)
j'allume le soleil de la veille
et celui de demain
le matin viendra

sexta-feira, 9 de março de 2012

hábil, o louco no trapézio
não tem rede nem chão
não teme a gravidade
ama só a ilusão
caiu, sim, e agora
definitivamente
dizem,
hábeis na ironia,
os vazios e sentados
os que pagam bilhete
para sentir sangue alheio

nunca fui ver o louco no trapézio
bastavam-me os seus olhos de marinheiro
e as mãos abertas a tocar o balanço das cordas:
último impulso, homem ao mar!
maré a chegar, manhã, amar

pisei o chão com força e descrevi-lhe
os círculos que em fogo via
e dentro ergui-te o rosto
com dedos-cordas
mãos de amar

passas ao longe e eu
conto-te em histórias
de ninguém acreditar

salvo-me




sábado, 18 de fevereiro de 2012

chamada a justificar-se,
a rosa invocou o mar e a solidão
que mais não tinha com que explicasse
porque se rasga sempre nela o coração

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

viajador

afiando a faca na pele
vejamos de que são feitas
as veias que correm na metáfora
sintamos no cabo da sensação a dor
que se esvai em branco pudor
a metáfora perfeita é aquela
de que não se regressa,
corte sempre inaugural
o da última metáfora
o do rebordo finíssimo
do teu silêncio
que corre por mim
vendo de que é feito o corte
esvaindo-se no branco pudor
da noite, de não estares
pouso real a faca
vejo de novo
a mão











quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

l'âge du jardinier

ce qui ne dure pas
ce qui est perdu
ce qui est fini
tout cela
c'est très bien
c'est la matière de la vie
passez, passez si vous voulez
mais ne touchez pas aux fleurs!
je vous prie de ne pas
abîmer les roses
avec le temps
qui n'est pas
le leur

rangez-vous comme vous voulez
dans une commode, pour ne pas déborder
portez votre esprit comme un parapluie
soyez sages comme un soupir
aussitôt avalé

passez, passez votre chemin mais
ne touchez pas aux roses!

vous seriez capables
de me dire exactement
le nombre de pas qu'il faut
pour dire adieu
et vous prendriez une rose
pour l'exemplifier!

non, ne touchez pas aux roses
on n'y trouve que le soleil
l'aube d'un regard
souvent noir

toda mi vida









segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

Un

le titre de ce tango?
soy feliz en tus brazos

les paroles?
sí, soy feliz en tus brazos

la traduction?
la vie n'est pas un tango

mon interprétation?
cántame un tango



habeas corpus

não temos fotografias de dois lados da mesma cor
nem cartas com impressões de fogo
nem mesmo pequenos objectos
esquecidos
fáceis de substituir
como hóspedes
não havendo provas documentais
este crime fica
por provar

mais se diria
se mais houvesse a dizer
que este tribunal não aceita
batimentos cardíacos
pássaros roubados a poetas
tentativas de prolongamento
absolutamente proscritas!
de um momento
indefinível
nem nada
que não seja de natureza verificável
como as pedras, os montes e a refeição
comum no calendário estabelecido
ontem-hoje-amanhã
dias bem contados

e mais ainda se diria que este tribunal
não está sujeito a interferências
divinas ou
panteístas ou
animistas ou
poéticas,
poéticas!

os deuses que nunca o foram
não terão assento entre nós

este tribunal decreta a execução imediata
dos rumores que lavram in petto
a perdição da normalidade

faça-se.








quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Para Wislawa

ao saber que foi o mais longo dos sonos que te levou
hesito, não durmo, espero que amanhã chegue e que me diga
que afinal hoje não se morre de amor nem de pena nem de nada
que não seja apenas ser noite e fazer um sinal cansado ao barqueiro
que se aproxima devagar e leva sem um rumor a passageira finalmente
adormecida

domingo, 29 de janeiro de 2012

Un

quand ce temps se termine
les dieux arrachent les flèches
encore vibrantes
elles ont servi
ah, elles ont bien servi!
et les plongent là
là où se trouve le marbre
parfait de l'immortalité
ils s'ouvrent ainsi
ils s'ouvrent complètement
à la foule blessée
de mon cœur

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

le carnet de bal

une seule note sans cesse jouée
trouvera ses infimes variations






quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

para G.

o dia para verso
querido que foi
de nascer
folheia os anos
vindos e por vir
detém-se na página
que não marca
que não dobra
pois o dia nascido
de um querer
sabe do tempo
o lugar

sábado, 14 de janeiro de 2012

Un

d'après l'oiseau qui a suivi mes pas
intrigué par cette terre, par
ce vol ancré dans le mystère
de la gravité amoureuse,
le vent le serre trop
les ailes lui pèsent
la chute viendra
et il apprendra
enfin!
la lenteur
de la joie

diário

a partir de amanhã
choverá sempre
sairei apenas
se passares
para ver se chove
ainda ou se apenas
amanhece



quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

s.d.

o tempo cabe todo aqui, o tempo, esse
indelével branqueador de existências

só não sei onde pôr os dalai lamas do momento
para que sejam finalmente felizes
Aqui e Agora,

3º Esq.



segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

é de barro, a peça
pego nela e rodo-a
ulisses e penélope
vinte anos antes
cais de chegada
antes do mar
sempre azul
sempre imenso
é isto que vejo