quinta-feira, 28 de setembro de 2017

Vals*

falta sempre tão pouco
para nada nunca mais acabar
que a tua voz nunca nada me prometa
que os teus braços sempre se desprendam dos meus
viver é poder recomeçar ou recordar que um dia se começou
a esperar

se eu te pudesse dizer que comecei a viver neste preciso momento
e que não há absolutamente nada para além dele

que um vals é o tesouro que nenhum salteador sequer sonha
que um só instante vale a história dos tempos

que o que um dia se sentiu
é o compasso entre dois passos

um corpo inteiro que canta o esplendor
de caminhar os dias até ti





*"Un Momento" (Héctor Stamponi)
pela Orquestra de Carlos di Sarli, canta Oscar Serpa











terça-feira, 26 de setembro de 2017

Moldura*

não é o mar que é belo
o que é belo,
é melhor dizê-lo assim
sem metáfora
nem rima,
o que é belo
é o tempo de lhe apanhar
os bocados de sol dentro, ao mar
ao mar, o que é belo
nele e teu
é que o olhem
e se demorem um pouco
o tempo de apanhar o que
não se pode nem escrever
nem guardar

*esquadria em Alberto Caeiro para uma fotografia


domingo, 24 de setembro de 2017

Maldonado

De seu nome Santiago
de sua fé Resistente
de seu credo artesão
desaparecido
desaparecido
sorte dos que teimam
em amar o chão que pisam
sorte dos que dão o seu corpo
ao trespasse obsceno da modernidade

Direito ancestral a estar aqui
sabe-o a raiz e o sol
di-lo a pedra e o vento e
todas as sagradas famílias
sem cordeiros Benetton

Daqui não passam!
o meu corpo é o limite absoluto
a minha vida o lamento que esventra
a miséria de quem não cuida
a miséria de quem não sabe
a morte de quem não vê

Santiago, são todos
Santiago, onde estamos?

Desaparecida,
humanidade.



terça-feira, 19 de setembro de 2017


se tivesse bordas o tempo
engastava-lhes a curva dos teus dedos
nos meus

segunda-feira, 18 de setembro de 2017

Chico

impaciente, mal sentada
regressando das vindimas
a passageira do comboio contou a sua história
que começa quando foi abandonada
e acaba nestes versos

e nela coube, de Caxarias ao Entroncamento,
a mãe fugida e o pai amoroso
a morte do irmão jovem
(sempre o coração)
os filhos gémeos
Bernardo
Beatriz

Vila Nova da Barquinha 
a casa e a horta farta
e o melro,
Chico

a solidão do pai
as mãos que cuidam
e o voo alegre do Chico
a solidão de todos 
e as voltas que a vida dá

rasantes, breve.





quinta-feira, 14 de setembro de 2017

ronda

quantas palavras vãs sobrevivem ainda
quantos momentos vividos passaram sem memória

rodamos no turbilhão do tempo
enganamos os anjos que guardamos

não há dia que não nos derrote
passam todos e levam o que somos

sigamo-los

quarta-feira, 13 de setembro de 2017

El pañuelo rojo

envolvo a memória no mesmo golpe alado
que desferes neste preciso momento
neste momento em que preciso
que me envolvas nas asas
de me seguires de perto
roçando o meu desejo
disfarçado de arresto

na aula de hoje aprendi a golpear o tempo
com os estilhaços de um pañuelo



terça-feira, 12 de setembro de 2017

alfabetizador

diz-me que letras e palavras juntavas
para dar a entender o espanto de tanta gente
debaixo da inexorável roda que a todos leva

missão nobre, por certo, a tua
a de não ter por manto a lã ou o linho
mas a árvore manchada de tinta que outros cortaram

amanhã regressas para mais uma lição
sobre a infalibilidade da lógica quando bem aplicada
e perderás de vista a mão que te protegeu do sol e da sede

e não te aperceberás do aluno que separou alfabetiza dor
propositadamente

diz-me, que palavras e letras juntavas para dizer
o amor?

do desapego

pela via do Buda
atinge-se essa indiferença
a que alguns chamam felicidade
eu
prefiro sofrer a tua ausência
e dizê-lo tantas vezes e de tantas maneiras
que regresses a mim até já não poderes voltar
eu
prefiro que me mates de saudades e de sentir
e dizê-lo tantas vezes e de tantas maneiras
que esconjures pátria e bandeira
e me peças asilo ao abrigo
da normativa maior
aquela que diz
vamos!
eu
prefiro que já não estejas
a nunca teres estado
eu
na verdade da via que é apenas minha
agarro-me a essa diferença que és tu
em mim
e
quando já não estivermos
quando as vias e as vidas cessarem
aquele momento que nos apegou
viverá ainda.



sem palavras

tão de perto escuto o teu movimento
que o respiro

domingo, 10 de setembro de 2017

Vargas e o Arcanjo


ambos derrotados pelo mar
maré constante da vida
que agora te traz
à orla da praia
voz ou pedra partida
que agora me traz
à orla do sonho
voz ou pedra partida

ambos derrotados pelo mar
naufragamos no poder ser

quando Vargas canta
quando o Arcanjo luta
vamos mar largo e alto
no mais sentido sem rumo
eco de todos os navegantes

onde estamos e estamos sem fim.


sexta-feira, 8 de setembro de 2017

Um

como poderia sentir a tua falta
se o teu abraço me move e estreita
a cada instante?

afasta-te um pouco
aí, no limite do possível
e diz-me

que tempo é este que incessantemente
nasce?



Poiesis


como tarda, este momento
como se alonga e toma alento

antes de ir buscar
o que já não está


da tempestade

nada sobrou dos ventos e marés
tudo o que era matematicamente certo
é agora escombro ou lasca

compara com o meu coração!




sem rumo

aonde vai o barco
o barco que vi passar

vai vagar nos teus sonhos
até que decidas remar

quarta-feira, 6 de setembro de 2017

Goya, 10h30

também sou artesã, sabes,
moldo a arte de estar
crio tempo

improviso memórias
e submeto o fugaz
com chicote

podes ler o que foi
e riscar as palavras
a tinta ou fuga

a tinta é frágil
como o papel
como o ser

talvez só a ideia
do livro azul
seja eterna

mero caderno
de uma viagem
por acontecer

café cais
de um porto
desconhecido

canto seguro
que vê passar
ventos e marés

de onde estou
as gentes e os bens
parecem-me fantasmas

de palpável
só a tua espera
e a caneta pousada

terça-feira, 5 de setembro de 2017

De cuervos y brujos*

nunca mais foi dia claro

a luz toda se escondeu 
nos golpes de asa e nas voltas de chão 
entre os lábios das cordas
sob teclas frementes 
adentro
no toque surdo da pele do tambor
adentro

quando sofre, diz devagar
bombo legüero...
que longe vai o dia claro...
e inteira cai nos braços da noite
uma e outra vez 
e esquece

não voltou mais aonde a esperavam
agora, afaga pupilas e acende rastilhos
e é pão e vinho e ar para a boca dos que penam
em cada golpe de asa e em cada volta de chão 
glosa que grita o sangue que corre nas veias morenas
glosa que grita o sangue com que mordemos o desejo
glosa que a cada momento se precipita para o fundo de tudo
tudo isso é luz! luz que já não pode seguir o seu caminho antigo
presa lenta da espera do movimento seguinte, esse de onde nascem
os reflexos de ti.


* a partir da versão da"Zamba de Lozano"por El Cuervo Pajón y los Brujos



 




improviso para passeantes

vem comigo passear nas ruínas dos sonhos
castelos amargos por entre mãos verdadeiras

de todos os prédios da cidade
o que mais gosto é aquele que me deixa ver o sol

de todas as flores de rua
a que mais gosto é aquela em que os teus olhos pousaram

e de todas as absolutas coisas do mundo
a que mais gosto é aquela que só o momento pode dar

por isso, quando vieres,
traz-me apenas uma vontade completamente nua

segunda-feira, 4 de setembro de 2017

manual de interpretação de sonhos

resiste como puderes
arma-te do aqui e agora
sejam essas as tuas únicas palavras

os loucos no divã são ouvidos por parvos sem remissão
beatas tecedeiras de ocultos e dizeres que a literatura dos pares aprovou!

resiste, experimenta resistir

talvez pelo meio tenhas ouvido 
"existe" 
e estejas já a associar algo a alguma coisa e tudo isso já puxou por mais fios que Ariadne algum dia pudesse conter na sua única vontade absolutamente despedaçada... 

tud está entrelaçado, parece-me ouvir
e se estivesse, tens os olhos para o ver ou as mãos para o destrinçar?

resiste, vá lá, resiste, arma-te ou ama-te
do aqui e agora 
deixa cair letras e palavras e mitos no esquecimento
arma-te contra todos os planos futuros e as agendas fúteis da modernidade
ama-te resistindo nesse aqui e agora
isso, aqui e agora,
em que me armas ou amas sem medo.


notas para zamba

fiz da tua ausência um abismo de paredes lentas com chão

 e nele desenho o passar das horas que caminham

seguras, ávidas

fiz da tua ausência uma montanha rarefeita

para ter de te pedir um pouco desse ar

com que me beijas

fiz da tua ausência um nó

para nele poder atar o lenço de uma zamba

que ainda não bailámos

e fiz, faço!, da tua ausência

a cadência que embala

o tempo.


domingo, 3 de setembro de 2017

depois de Pugliese

não era exactamente como um laço e o seu proverbial nó
nem como aqueles campos invisíveis a que se chama atracção

era mais parecido com o som que faz o desejo 
quando corre pelos bandoneóns

era semelhante ao toque que a tecla pressente
quando aproximas o teu corpo do meu

era igual à orquestra esperando 
o nosso compás

era assim que eu to diria
se me pudesses ouvir