quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

Para o Ademar, hoje e sempre

diz-lhe que volte
ainda que não cante
que passe discreto e só
perto do beiral onde estendo
a roupa que espera o vento e o sol
os mesmos que te levaram sem rasto
num dia de maio para um sul sem nome

diz-lhe que volte
ainda que não fique
por ser maré e não toda a praia
que traga nos olhos os beijos por dar
como verdades só dos poetas sentidas
as mesmas que conto nos grãos de areia contida
uma a uma e depois todas um dia juntas contigo

diz-lhe que está.


*Ademar Ferreira dos Santos: 09/12/1952

Voo sem data


Fotografia de Ademar Ferreira dos Santos.

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Alaudidae*

de manhã cedo, antes do mundo
vem pela margem uma cotovia
vem acordar o rio
e num cantar atento
deixa que as águas levem
as novas dos sete dias
do mês de dezembro

* Para a María Alonso Seisdedos,
em dia de aniversário

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

de um poema devem constar

primeiro
princípios-gerais aplicáveis uma só vez
que a mão que escreve, logo esqueça!
segundo
medições rigorosas da intensidade
de tudo o que lá não está, estando
terceiro
imaginar que o teu punho tão cerrado
é agora palma estendida na pele das palavras
quarto
saber que não temos mais tempo
quinto
não termos mais tempo



quarta-feira, 23 de novembro de 2011

la faille

le lendemain
la trace de sang sur le mur
ressemblait à un arbre
que l'hiver pourrait
enfin aimer


domingo, 20 de novembro de 2011

a bordo

quantos mundos desfeitos
no teu cantar!
mas mais ainda havia
que começavam
e por ali iam agitando-se
nos teus olhos subitamente
tão marítimos
cintilava neles o mar escondido
por nunca ninguém haver nele naufragado

cantavas sem ver que a passageira
tinha largado as mãos da borda

cantavas sem perceber o que diziam
as ondas subitamente
tão revoltas

a cor do fundo do mar
é o seu maior silêncio

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

criou abutres com desvelo
e estendeu-lhes a própria mão
e assim de grito em grito se achou
no deserto que nenhuma água tocou


terça-feira, 15 de novembro de 2011

o que mais gosto em ti é o queixo
parece que ri mordendo uma ideia
que alguém deixou esquecida

domingo, 13 de novembro de 2011

le vol

trois petits voleurs,
trois chérubins
crient leur fausse détresse:
un peu d'eau, un verre d'eau, de l'eau!

s'il vous plaît, monsieur, madame, on vous veut complètement distraits,
l'un avec l'autre ou l'un dans l'autre, l'un pour l'autre, distraits, parfait!
on peut commencer à vous dire ce que vous n'entendrez pas:
nous sommes des créatures de sainteté
ceci n'est pas un vol vulgaire
mais une blessure
bien délibérée
elle y est
vous partez, les plans refaits, main dans la main
sous la pluie presque joueuse et un vent très malin
un vol, quelle contrariété!
elle y est
vous touchez peut-être à son nom, peut-être à son sang
quand vous oubliez le vol vulgaire et apparent
cette blessure... donne-moi ta main

monsieur, madame, veuillez excuser
les trois petits voleurs,
les trois innocents
de cet instant


segunda-feira, 7 de novembro de 2011

a mão

todos os pedaços se podem colar
dos ausentes fazem-se janelas
e delas sai-se para o mar

a encosta

ao abrir a janela de uma manhã
viu que o mundo tinha mudado
não disse nada a ninguém
e mudou com ele

domingo, 6 de novembro de 2011

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

a jujubeira

sabe-se que os povos fronteiriços
se entendem no leva e traz
em que língua e modos
se confundem
bem

como quando passaste
como quando passei
para esse lado
também


a dívida

quanto devo
a quem devo?
quem sois
que eu não vos vejo?
não serem de pastorinha
os meus olhos!
e como hei-de pagar?
com o dia-a-dia,
com a vida toda?
dizem-me que devo
e se devo, quero pagar
até à última gota de sangue
meu e por laço e afinidades várias
também vosso

creio, creio num só senhor
amo e eterno credor
existirei por conta dEle e
de quem me quiser roubar
na provida esperança de
alguém que me diga
se valho,
se não valho,
para pagar

por ora,
disponho de um pescoço
ainda rijo para cortar

as mãos,
levo-as à cabeça
estranho, estranho lugar




quarta-feira, 2 de novembro de 2011

da brandura*

a palavra que queres varia ligeiramente
neste instante oscila entre dócil e dúctil
sabê-lo-ias se fosses seixo redondo há muito no leito do rio
se nos teus gestos guardasses o perfume de um fruto em flor
se no teu canto se ouvisse a brandura do entardecer
na varanda do meu olhar



*Naranjo en Flor
poematango de Homero Expósito

domingo, 30 de outubro de 2011

exteriores

nada se pode saber que não seja nosso
os teus olhos marítimos, esses que me levavam a ver o mar
são afinal os meus, e o azul e a água que por eles passavam
apenas a minha longínqua vontade de neles navegar
e ver o mundo abrir por dentro sem nada revelar
foste todo eu e a minha saudade de um fado
que ficou por dançar




quarta-feira, 26 de outubro de 2011

El árbol del olvido*

si conoces las raíces de ese árbol
sabrás que no hay olvido
sin la presencia del despertar temprano
para ver los pajaros dormidos
que no saben eso de la vida
y de sus cuartitos

ahí están, despiertos
se van al sur

si conoces las raíces de ese canto
sabrás que no hay olvido
que no mate el vuelo
y la mañana

ahí están, que regresan
el árbol tiembla
hondo y alto



*"Canción del árbol del olvido", (Ginastera) Victor Jara

sábado, 22 de outubro de 2011

a nu

dada a complexidade de todas as teias
que desenham os teus dedos nos meus
matemos as palavras que já não servem
que nos vestem de tudo o que vem depois


quinta-feira, 20 de outubro de 2011

sur le quais de Stalingrad

partir et faire partir
et se retrouver à chaque fois
dans cette immense permanence
de ce qui ne cesse d'arriver
comme un tempo primo
incomparable

terça-feira, 18 de outubro de 2011

fado em tango

chama-se com a mesma voz
com que se chama a dor

se baila con el mismo cuerpo
que se entrega al amor



segunda-feira, 17 de outubro de 2011

a corrida

não disseram ao animal indefeso
que a caça é o descanso
de gente sem fome
de gente forte e destemida
não o avisaram que a graça
tem um sabor muito apreciado
e que a leveza se paga com chumbo

mas antes, que corra, que corra!




domingo, 16 de outubro de 2011

to a friend who is lying down for a while*

lying down for a while
just resting
calmly pondering
what it is about life that
keeps us coming up
for bread and a prayer
for something deeply shared
what it is about life that
does not let go
does not give in
coffee is ready but what about
les croissants?
your accent will surely trigger my laughter
and your loud objections!
and we will walk by the Seine
and dream for a bit
and then dream
some more


* William Louis Mills II

la reinette

le temps qui reste
on le mesure comment?
en années, il est insuffisant
en secondes, il est plutôt fuyant

le temps qui reste
on le maîtrise comment?
l'assurance n'offre pas de garant
les murs s'écroulent assez facilement

le temps qui est
joue sans cesse le couteau et la pomme
et toute la tendresse d'une blessure imparfaite

le temps qui est
se joue entre les morceaux coupés
et la beauté toute entière de tes mains

et la reinette?






sábado, 15 de outubro de 2011

le quotidien

le temps nous pardonnera tout
et nous oubliera toujours
faut-il se lever, alors
pour un verre?

il faut savoir que la réponse
inclurait toute une vie


quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Un

disqualifiés!
vous n'êtes pas dans les normes
pour cette catégorie
trois minutes et vingt-trois secondes
ce n'est pas la vie
l'enlacement n'est pas le siège de l'oubli du monde
cette orbite ne doit pas esquisser des possibles infinis!
la lumière n'est pas à vous
l'ombre souhaitée
non plus
et
cette tension nous est insupportable
tant elle nous crie dedans,
arrêtez!
arrêtez









quarta-feira, 12 de outubro de 2011


me trouver encore dans le rond maritime de tes yeux
et amurer le matin pour mieux sentir le vent


terça-feira, 11 de outubro de 2011

da botânica

da flor nasce a mão
que a arranca:
haste, corola
dor
raiz-maior
a de um amor

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

ta vie est un château mais
ton pays meurt de faim
il meurt de chagrin
pas une graine
pas une aube
ton pays s'en va
tout est nuit
les oiseaux sont tombés
d'un ciel aveugle
ton pays s'en va
rien ne tient
plus rien debout
car ton pays s'en va
péri contre tes murailles
il dit
il était une fois
il était une fois un château
au milieu d'un pays rêvé









segunda-feira, 3 de outubro de 2011

descompasso

confundiu a respiração
falhou um batimento
pediu a suspensão
da manhã
dos dias
da vida
ou apenas de um momento
o que custa um só momento
à eternidade?
o que custa ouvir um descompasso
e deixá-lo assim num batimento
novo de big bang silencioso
nova teoria da formação de tudo
novo mundo a estrear agora
só para poder dizer que tem
a vida toda pela frente
toda num momento
(pode ser este)




domingo, 2 de outubro de 2011

Um

subindo por dentro
uma escada impossível
nenhum degrau, por mais alto ou duro
impede o dois-a-dois alado
precisão matemática
de um passo só

terça-feira, 27 de setembro de 2011

rubescente

a romã abre-se com as mãos juntas
e em completa rendição



segunda-feira, 26 de setembro de 2011

o momento

o aventureiro e o peregrino encontraram-se na encosta da montanha
nunca se soube quem subia ou quem descia
a quem pertencia a prece ou a manhã
e que caminho era aquele afinal
que agora pisavam

pour Momo

tu savais déjà que la boussole
ne pourrait pas te servir
le nord n'aurait plus besoin
de son étoile
le regard ancré aux rêves
n'aurait plus besoin
de la terre
ce point est errant
à tout jamais




quarta-feira, 31 de agosto de 2011

para a Guilhermina

desceria outra vez os dedos
pelas tranças de cinza seda
se ainda por cá andasses
a festejar o fim d'agosto
com um bolo e velas
e todos os anos
em que me amaste

quarta-feira, 13 de julho de 2011

la femme attend
elle attend que le temps soit enfin
le temps de finir d'attendre
et en attendant ce temps
elle attend que l'attente
se finisse bientôt
malheureusement
en attendant que cela se termine
elle attend encore que tout cela se termine
qu'Ariadne parte en laissant son fil attaché au rosier
que Pénélope parte en laissant sa broderie inachevée
(mais elle veut apparemment finir de broder la courbe de l'aile
de ce petit oiseau qui a pris ses contours sur la toile
et qui ne doit pas manquer son vol)
et la femme attend



Um

caminhos largos
tão largos
que só lá cabe
a nossa estreiteza

terça-feira, 12 de julho de 2011

4

des balles ou le temps
tout va finalement
adentro
centrepoint infini
lugar
de todas las pérdidas
noyau infranchissable
à l'espoir

le cercle est enfin
dans le carré


sexta-feira, 8 de julho de 2011

Touche pas! à la règle du jeu

les six melons illégaux
ont été confisqués
des mains sales
de l'employé

lèse-majesté!
lèse-majesté!
la poubelle est
sacrée!

les six melons illégaux
sont maintenant en sécurité
il pourrissent lentement
loin de toute faim

quinta-feira, 7 de julho de 2011

il est minuit et la fête remplit le château
d'un bruit de vie qui ne laisse pas d'espace
le solitaire sort un instant pour
des raisons inconnues
dehors
l'ombre des arbres familiers
et la courbe fine de la lune
et des chants, ici et là
semblent dire que
le bonheur est ici
pas ailleurs

il rentre
il est rentré

plus tard
il se réveilla pour
des raisons inconnues
pour le cri d'un oiseau perdu

ailleurs

promenade

la fête a commencé dans le château
dehors, la nuit tremble en perpétuité


quarta-feira, 6 de julho de 2011

sonha sossegado quem não cravou o seu sonho
num tronco de árvore aberto à chuva e ao sol
e se senta entre fundas raízes e flores breves
sonha sossegado quem não estremeceu
do gosto da cereja no bico do pássaro
sonha sossegado quem descreu

quarta-feira, 29 de junho de 2011

uníssono

estranha militância, essa
sem causa nem mãos fechadas
sem palavra-de-ordem
sem canções-de-marcha
sem sequer um papel
a convocar alguém:
vem!
e vieram dois
e encheram a praça

domingo, 19 de junho de 2011

é claro que o poeta vai salvar o mundo
ainda que seja amanhã, ainda que seja
tarde de mais

é no tempo que vem depois
que quase tudo se passa

guardo-te então
para mais logo

o momento

sábado, 18 de junho de 2011

pretéritos

dessa história que me contaste
retive pássaros e fios, rios em aldeias
que não existem em mapa nenhum, mãos e corpos
tão humanos que parecem sentir eles quem os ouve
a serem contados e talvez, talvez assim seja, porque
das histórias que me contaste, nunca se soube
o lado em que nos encontrámos


quinta-feira, 16 de junho de 2011

siete palabras
para que la marea
olvide al mar

quarta-feira, 15 de junho de 2011

barcos negros e revoltos
paredes de água e frio
corredores verticais
a pique, a pique!
e descem sempre
descem sempre
ralo eficaz da miséria
ralo largo escorredor
descem e descem
mais de nove abismos
muito mais!
contem-nos
contem com
nenhum abrigo
nenhum canto
nenhum chão

o sol é para quem ficou
à beira-mar

Eco e Narciso

a única obscenidade é a tua dor não ter grito
que lhe responda estilhaçando-a
a última solidão do mundo
é o vale onde Eco deixou de repetir
um amor que ficou por sentir

segunda-feira, 13 de junho de 2011

un mot qui sert à l'appropriation exclusive et intime de tous n'est plus un mot
il est la vérité exclusive et intime du passant qui l'a prononcée sans jamais
l'entendre, tel l'oiseau qui vient souvent survoler ces lignes

couplet

um imenso relógio contrário
o chão onde nos perdemos


domingo, 12 de junho de 2011

encontro

das cordilheiras caem pedras todos os dias
rolam e param quando há um vale
ou viajam se passa um humano
e leva sem saber essa pedra
pedra pequena pedra areia
pedra pó pedra caminho
pedra imensa
mundo

sábado, 11 de junho de 2011

le temps, demain

quelle solidité, cette branche
l'arbre, la terre et même l'oiseau
si proches, on dirait qu'ils sont là
on dirait d'eux qu'ils sont réels mais
le nuage s'est défait entier sur ma peau
je tremble de froid et tes bras m'entourent
et je redeviens branche, arbre, la terre, le vol



sexta-feira, 10 de junho de 2011

o vaso preto (para L.)

serve o vaso preto para nele se afogar
a mágoa que cobre de negro o céu
cabe nele a noite que te envolve
e a mancha que te pesa
cabe tudo nele
até a mão que um dia o há-de quebrar
para cuidar da flor entretanto nascida
descuidada, da terra e da chuva
de todos os prantos



quarta-feira, 8 de junho de 2011

a margem

serve a ponte incompleta apenas
para se saber que há caminhos
que acabam em si mesmos
serve a ponte também
para poder regressar
ao cais e esperar
pela incerteza
do barco


domingo, 5 de junho de 2011

um brinde aos indiferentes!
muito boa é a vida quando
não é preciso proteger os olhos
da luz de dentro, quando o corpo
obedece ao tempo e se senta ou levanta
sem que se conheçam as costuras do sofrimento
quando a noite se anuncia solidamente cronometrada

para que nenhum sonho venha alterar a manhã em que
passando talvez um pouco mais devagar se desse o indiferente
conta de que aquele pequeno amontoado de penas acastanhadas
estranhamente disposto no chão, é afinal o pássaro que na madrugada

cantava o mundo por haver


quinta-feira, 2 de junho de 2011

amplification

la fausse note est la seule qui ne ment pas
défaut d'un temps trop précis pour la voix
elle perd continûment et très parfaitement
le moment où elle aurait pu être
simplement
juste


domingo, 29 de maio de 2011

o piquenique

a realidade? ia a tempo amanhã
hoje era ainda a canção da colheita
ou uma dança de pássaros e o momento
de a seguir com os olhos fixos na impossível
liberdade. a realidade? ia a tempo de amanhã
ser a parede fria que rodeia o quarto hoje. a real
idade? os pássaros comeram todas as migalhas
e vão todos chegar a tempo de serem mortais
o copo acaba ali naquele rebordo exacto dos olhos ou dos dedos
o que lhe está além é já o céu de amanhã
a gota que cai proverbial
dos meus lábios

25

deixo passar a data
ela lá vai, tranquila
num sono de viagem
não lamenta a paisagem
adormecida aos sentidos
passa apenas numa calma
de não saber que o dia já foi
e que algures alguém apenas
dormia

quinta-feira, 26 de maio de 2011

ventre

albergam-se sonhos
até serem realidade
dizia o anúncio

quarta-feira, 25 de maio de 2011

foi o tempo quem orquestrou
o teu rapto imenso
levou-te num passe de magia
ainda inexplicável
desligaram-se as luzes
vem a manhã


segunda-feira, 23 de maio de 2011

se por vezes me distraio
e me sento na borda devoluta dos dias
com o coração a ensurdecer aos gritos
faz-me o favor de não continuares
caminho

sábado, 21 de maio de 2011

Toalha Nova

No dia 22 de Maio de 2009, o Ademar escrevia assim:


Improviso por conta da agenda...

Teço as palavras
como se a vida
me pedisse todas as noites
uma toalha nova
sobre a mesa
a que me sento
com as estrelas
tomei de empréstimo
à memória das mãos
este tear
e só tropeço nas cedilhas
quando danço contigo.

Ademar
22.05.2009


Já não pôde escrever o improviso diário no dia 22 de Maio de 2010.

Ficou o tear, as nossas mãos e toda a saudade em que tropeçamos, Ademar.


talvez encontrasse alguma correspondência secreta
entre os números e as letras que nos vão fazendo
se não soubesse desde sempre que somos nós
o segredo
cuidarei das flores que esqueci
com a água que sabes eterna

e subirei aos teus ombros
para cairmos juntos

e sentirmos de novo
o milagre da terra

2:48: inacabados

quando me pedes que dance
que dance apenas aqueles minutos
e que finja que cada um deles não é o fim





entre as duas bordas
passa o mundo como rio
os amantes talham a madeira
nascem barcos e pontes
transborda a vida
mais tarde
alguém dirá que ali
passava um rio que
levava o mundo

escrevemos o fim antes
de poder começar e
ficámos assim
livres

terça-feira, 17 de maio de 2011

para a Maria Eugénia

trazias para junto da lareira
um pouco de mar
um punhado de terra
e muito papel branco
para entreter as meninas
que se espantavam com as cores
e tudo o que as mãos afinal sabiam fazer
e a tarde acabava sempre por passar ao som
desse imenso tagarelar

ao lado, afastando a morte sempre
o amor

segunda-feira, 16 de maio de 2011

serão três dias apenas
ou ganhará o teu sofrimento
um quarto dia ainda a enganar
a ceifeira que não canta o trigo
nos campos que já não vês

desejo-te daqui um rio
e uma mão amiga
para passar

e uma margem suave
para depois

domingo, 15 de maio de 2011

le chant

parfois un vrai petit oiseau dérange le silence
en chantant tout près sans jamais se montrer
la fenêtre bien ouverte ne révèle rien
il se cache dans son coin fermé
aux yeux humains

balzaquianos

palmas assim parecem chuva
quando o fruto da terra cresce
e se dá inteiro às mãos da colheita

um abraço

um abraço tem apenas o tamanho dos braços abertos até ao limite da possibilidade
acaba na ponta redonda dos dedos que acolhem uma outra pele
e percorre o peito e o rosto e todas as terminações
receptivas

não há registos cósmicos do evento

Um

separados
para podermos
momentanea
mente
ser a vida
antes
de adão e eva

depois
ser apenas
homem e mulher
e sonhar
paraísos

perdidos

sábado, 14 de maio de 2011

75%

ainda uma semana terá de passar
antes que o coração se revolte
por maioria qualificada
das mulheres

negativos

o dia esgotou-se na noite branca
o recorte da luz fende as pálpebras
o rebordo das falhas fere o corpo

a lua cresce imensa e nunca dorme

quinta-feira, 12 de maio de 2011

negociemos esta dívida
com as mãos em cima da mesa
e com os joelhos bem encostados
joguemos o que sobra para que nada fique
só o amor

terça-feira, 10 de maio de 2011

juste maintenant
l'instant s'est rendu
à son passage
talvez Camões não reconheça o frigorífico
mas sabe ainda quem é Lianor e a fonte
onde vai beber a água do olhar alheio

domingo, 8 de maio de 2011

genèse

avant que je ne mange le fruit
mes mains ont pris sa forme
mes mains ont pris sa faim


sábado, 7 de maio de 2011

odoratissimum, ce jasmin
que tu as dérobé au jardin
il faisait encore nuit
le temps où le rêve
est intact

odoratissimum,
ce matin






quinta-feira, 5 de maio de 2011

flores
são os pés sujos de terra
de andar pelo meio delas


terça-feira, 3 de maio de 2011

vi-te hoje ao longe
cada dia te pareces mais
com o meu olhar

segunda-feira, 2 de maio de 2011

homem ao mar e ficção em terra
lançaram o terrorista em morte poética
e guardaram a prova que já não é corpo
mas sopro de ser que olhos nus não vêem
talvez a próxima onda diga baixinho
o epitáfio que ainda ninguém ouviu


domingo, 1 de maio de 2011

postérité

donne-moi un cliché
que je pourrais déchirer
ou chérir ou alors oublier
dans un tiroir qui gardera
la trace invisible de nos doigts

sábado, 30 de abril de 2011

um par de submarinos para uma nação

o Arpão veio fazer companhia ao Tridente
patrulharão os mares sempre atentos
não vá António Vieira despertar
e lembrar-se de um novíssimo
sermão aos peixes!


Ás

sabemos que sim,
que a vida é um castelo de cartas
que o vento é francamente caprichoso
e que nada poderá parar aquela queda programada

agora está um montes de cartas no chão que é preciso apanhar
e guardar para a próxima vez em que que fingiremos apenas jogar

terceto sindical

antes do primeiro de maio
passamos o ano a tentar perceber
este trabalho que é viver

quinta-feira, 28 de abril de 2011

poema para pacote de açúcar

leu gostou memorizou
fez copy paste
e foi à vida




ambição

ter o silêncio da manhã antes do sol
e gozá-lo por entre as pálpebras
levemente entreabertas
eis tudo

quarta-feira, 27 de abril de 2011

E110

o amor está gasto
mais vale um rebuçado
que saiba mesmo a laranja


segunda-feira, 25 de abril de 2011

do Tejo saem os barcos da minha infância
aqueles que me levavam sempre a outras margens
as palmeiras eram mais altas e os quintais mais labirínticos
e os primos e os homens e as mulheres da família tinham nomes exóticos
e sorriam como se tivessem segredos que tocassem na passagem do sol:
"mais tarde" diziam, e era certa a revelação de todos os mistérios
mais tarde, eu saberia

domingo, 24 de abril de 2011

rima revolucionária

abril chega e as ruas entopem
nos acessos ao shopping

sábado, 23 de abril de 2011

1/100

prenons un mètre
un fil tout droit, métallique
bien marqué, régulier, réel
un mètre
mesure de surface
mesure de longueur
j'ouvre mes mains et
je l'ai, ce mètre de long
pas de densité, car
il n'est pas carré comme
l'espace où je me trouve
il n'est pas intérieur comme
l'espace où je me retrouve
les mètres y sont mystérieusement
confondus avec les heures

il fait un mètre, cet espace
que mes mains couvrent, écartées
l'une de l'autre et le fil métallique et dur
au milieu
ce mètre, pourtant
est bien puissant, bien malin
car il dit très exactement
le début de ton absence
le début d'une route trop longue
pour mes jambes et mon souffle
non, ce mètre n'est pas l'infini
il commence: la marque est là!
et il finit: la marque est là!
ce mètre, je le mesure avec mes mains
je connais même chaque centimètre
entre les deux bouts que je parcours
presque tendrement, comme une partition
qui me pousse gentiment à chanter

ce mètre est exactement comme les autres
comme tous les autres que je n'ose pas compter
de peur de me perdre et de ne plus jamais te retrouver

ce mètre restera ainsi un mètre
sur la route de l'infini

je laisse tomber le fil
et le métal résonne
dans la pièce

(tu es là)


sexta-feira, 22 de abril de 2011

pensar que céu e mar são azuis por engano nosso
é ainda amar esse engano e essa luz e esse saber
passeio perto da onda e minto à eternidade



quinta-feira, 21 de abril de 2011

desce, vem comer
fiz hoje repasto do dever
e misturei-lhe ervas e flores
muito iguais às que me deste
vivas e cuidadas e tão precisas
que me corto sempre com vagar
nos espinhos de todas as hastes
e levo-te comigo à Provença
para colher o início da
primavera em ramo
em flor

relance

soletra-me o nosso futuro,
começa ontem
soletra-me o fim devagar,
começa já
talvez assim eu tenha tempo
de viver tudo e voltar ainda a tempo
de nos ver

terça-feira, 19 de abril de 2011

cai chuva pelo meio de uma noite quente

conjura da terra e do canto das cigarras

que nos acompanhou o sono

segunda-feira, 18 de abril de 2011

sóis

atrás daquele magnífico entardecer

que os mares atravessam

fica a ilha dos amores

por fazer

gerações

jogam-se à mesa as cartas de séculos

a arte do pastor e do agricultor

e o olhar benevolente de histórias sabidas

por mais do que uma sabedoria

amanhã, ouve-me,

todos ainda dirão que o tempo

o tempo! passa

sábado, 16 de abril de 2011

http

times new roman

tamanho doze


papel branco

lápis preto


a mão

sexta-feira, 15 de abril de 2011

assembleia

o discípulo estava só

e assim como estava

partiu o pão e serviu o vinho

por todos os judas presentes

quarta-feira, 13 de abril de 2011

Desnorte

betão lisinho,
o da nota
cinzento rápido,
o da estrada
e o povo pasmado
ainda, ainda
a vê-los passar

terça-feira, 12 de abril de 2011

osmesmos, osmesmos!
engravatados, aprumados,
com a honestidade e o carácter
a arrepiarem-lhes o lábio e a lábia
coveiros de luva fina e jantar tardio
messias de estatura média e dispepsia
urnas finais da mentira-hóstia da pátria!

voto.

desistência colectiva.

homens-palhaço-da-luta.

voto:

FORA!

com uma mulher grávida
com um aprendiz de qualquer coisa
com uma árvore e as tuas mãos
havemos de nos governar

domingo, 10 de abril de 2011

ao poeta

lembrei-me hoje por total descoincidência
da praia onde iríamos esperar o mar
do cais onde nos sentaríamos
a jogar às viagens
partidas reais,
todas elas
e voltar,
sempre


Un

les instants respirent à travers nous
leur tendance à s'éterniser

sábado, 9 de abril de 2011

terá sempre de haver quem siga o curso de uma gota de ar até ao fim
e faça desse trilho uma duração inquebrável de possíveis
e viva dele sem falha e sem esperança


quinta-feira, 7 de abril de 2011

les passants et le parvis

les mots que tu dis ce soir
sont venus me rencontrer:
des roses, quelques abricots
et un grain de sable horizontal
ainsi s'explique la migration
d'un nuage qui s'est fixé:
l'instant-cliché de nous


quarta-feira, 6 de abril de 2011

o dia acabou
o dia começou
no intervalo
durou a vida

terça-feira, 5 de abril de 2011

o futuro faz-se por entre escombros
e rumores que o vento leva
a outros crentes:
talvez haja ainda
uma roda apertada
e lugar para mais um

segunda-feira, 4 de abril de 2011

l'indiscrétion

le corps secoué au hasard du mouvement du train est
le corps secoué dans l'intention de l'amour est
le corps secoué par cet immense silence
des illusions jamais osées
des questions jamais posées
sauf celle-là, indiscrète
dont le secret n'est
que ton regard

le train a continué sa marche
(vers la dernière station)

domingo, 3 de abril de 2011

para M.

tinhas razão
a escada tem sempre um degrau
mais abaixo e outro e ainda mais um
subi-los-ei por isso a todos teimosamente
e até já não ter carne nas mãos e nenhuma luz
que me faça fechar os olhos como numa alegria
inesperada

Saturne menotté

la jalousie des dieux est telle
qu'il faudrait même se cacher
ses propres bonheurs
de ce pas, viens
prenons la marguerite
et effeuillons-la aveuglément
pour qu'elle ne nous révèle rien

sábado, 2 de abril de 2011

do mito

reuniram-se os deuses para deliberar
do trajecto da seta e dos ventos

em baixo, os humanos esperam
com uma ansiedade natural

entretanto, mais perto
um pássaro distrai-se

e cai no colo de Vénus

sexta-feira, 1 de abril de 2011

estranho som o da terra a engolir os seus filhos
das entranhas revoltas em dor e da passagem
que talvez acabe num rio macio e silvestre

estranho som o dos teus olhos a entoar manhãs
e a entrar devagar pelas noites já quentes
como cigarras que ensaiam o seu canto
ensurdecedor

e por fim o silêncio que haverá depois
depois de uma rosa romper do nada
e dela me nascerem as mãos

quinta-feira, 31 de março de 2011

refrão para duas vozes e um eco

não sei se é a mesma canção
mudou as pausas, pesa-lhe a letra
hesita perante a escala, queria ser mar
hesita perante a escala, queria ser mar


quarta-feira, 30 de março de 2011

suite

rien d'historique sur le soleil printanier au bord de la Seine
mais, si cela se racontait comme dans un chapitre qu'il faut souligner
et si cela avait l'audace de prétendre avoir un air de vérité
de quelque chose qu'il faut savoir
pour raconter plus tard
comme dans le temps
où l'on partage
tout







terça-feira, 29 de março de 2011

la nuit comme la mer
se calme au passage de la lune
tourne autour de l'ombre d'un regard
vague autour des bras qui ne luttent plus contre
la lumière du jour
le jour comme la mer
soulève sa fleur de sel au passage des vents
l'abandonne sur ma peau
tourne autour de la lumière d'un regard
vague autour des bras qui ne luttent plus contre
la récolte du temps
de l'amour



estende o sopro de um momento até ele ser apenas puro tempo

meia-tarde, uma primavera ou o botão que a árvore promete







segunda-feira, 28 de março de 2011

quantos voos cabem nas mãos?
e quanto desses voos é ainda
prisão?

sábado, 26 de março de 2011

ascension

nous suivons l'oiseau
qui chute dans le vide
pour pouvoir s'envoler
regarde son jeu constant
avec le vent, regarde
ses ailes contentes
son corps tendu
flèche initiale
regarde la douceur
d'un cercle improvisé
dans les caprices
des courants
ou
comment
le vol s'enracine

la chaise aux oiseaux

tout un répertoire
des milliers de chansons
et les possibilités de les dire
autrement
note fausse ou juste vulnérable pour
un temps qui passe coule part et
ne revient pas
il faut le dire
autrement
tout un silence pour
des milliers de mots
et leurs impasses

les oiseaux n'étaient que
des pas aussitôt perdus
les souliers n'étaient que
des formes à chaussures

il faudrait trouver le ton
pour dire que la chaise
m'a renversée
que je n'entends que
la rondeur de mes pas
autour des tiens et que
M. Ellington a compris
tout cela, oui, redis-moi ce
blues pour la sous-pulsation
du bonheur

que cache le monde?

sexta-feira, 25 de março de 2011

miró

rien n'est plus à sa place
les pas des oiseaux ont renversé la chaise
où la femme attendait


quarta-feira, 23 de março de 2011

o padrinho

sai um mentiroso
entrará outro
logo depois
urge afundar
Camões


segunda-feira, 21 de março de 2011

espero o nascer do dia
para te despertar
talvez entretanto
sonhe

manual de instruções para hesitantes

vive agora
pergunta depois

domingo, 20 de março de 2011

deixa-te vogar no mar que te baila nos olhos
que não há onda que não nos traga de volta
ao tempo em que somos a orla segura
da praia

sábado, 19 de março de 2011

ando aqui às voltas
com os limites desta flor
contida toda até ali
no limite imensurável
de eu não lhe saber
os bordos
de ela ser flor
de eu ser gente

Un

sa volonté de contenir
ne fait que confirmer
la possibilité d'un
bouleversement
entre-nous
la digue

sexta-feira, 18 de março de 2011

legado

entre belas flores artificiais
as crianças radioactivas
brincam ao futuro

quinta-feira, 17 de março de 2011

j'oublie ta pure présence
elle était là, n'est-ce pas?
j'oublie le goût de ta densité
mais elle était là, juste maintenant
ou c'était peut-être il y a longtemps
hier, que sais-je, un jour dans le calendrier
lui, il sait, il doit savoir, puisque il sait tout

il me faut un train ou un passage ou alors
devenir comme toi une image
et m'oublier

quarta-feira, 16 de março de 2011

a um desconhecido

que o mar me leve
aceito
que a terra me engula
aceito
que o céu me abata
aceito
tudo isso é cruelmente
justo

que as tuas mãos
me envenenem o futuro
que os teus passos decididos
se dirijam para a mesa de um acordo
lugar exacto onde caem as árvores
e que as tuas mãos assinem
a morte dos meus filhos
a morte dos teus filhos

não.

talvez te negue
um lugar a esta mesa
de gente com as mãos
sujas de terra e de sol
e algum sangue

talvez te deixe ir amanhã
ao meio-dia para o campo
em fukushima

iremos todos depois
depois da ira de todos os deuses

terça-feira, 15 de março de 2011

será preciso mais um poema
para declarar a absoluta necessidade
de tudo?

domingo, 13 de março de 2011

comment voulez-vous que les êtres heureux
puissent aimer? comment imaginez-vous
les êtres qui sont comblés, qui ont presque
honte d'avoir tout, qui aimeraient même
avoir moins et pouvoir peut-être
sentir un manque, peu importe
lequel, oui, même celui
de l'amour
desfez-se aquela vida na onda
de um azul que já pôde ver
estava contente
talvez por um dia sem sobressaltos
talvez por ter ganho algum tempo
do trabalho adiantado na véspera
talvez por nada que mereça ficção
a não ser que fosse suprema coincidência
estar ele (e por que não ela?) escrevendo
um primeiro poema sobre o tempo
e a beleza que é
tê-lo



sábado, 12 de março de 2011

Un

je le savais avant tes bras
je n'en doutais point
l'envie d'être là
a sa lumière
é o meu destino que cumpro
sempre que refaço um laço sem tecido
e chamo-lhe nu em vez de inexistente
e pego nele e ato-o e aperto-o mesmo
com as mãos
é o meu destino ver algodão
ainda em forma de botão-de-rosa picante
enquanto tu apenas vês uma metáfora que entretanto
se desfiou

sexta-feira, 11 de março de 2011

da poesia

desconheço a cor de uma dália
ignoro se é de um tom escuro e carnal
ou se hesita e é delicada e se deixa tocar
e mais não sei

quinta-feira, 10 de março de 2011

pego no manto do cair da noite
e passeio-me pela borda da vida
pensando que bom seria descer
pelo mais ínfimo brilho
do teu olhar

terça-feira, 8 de março de 2011

le pli

se livrer
suivre le fil
de son labyrinthe
revenir sur un nouveau impasse
puis tracer une route entre les murs
chercher la lumière entre les murs si hauts
les écarter pour pouvoir danser et se laisser tomber
dans tes bras
chercher la lumière entre tes bras si hauts
les écarter pour voir la terre puis les renfermer
autour pour
éloigner les murs
si hauts
se livrer

interpenetração

e da mulher nasceu outra
e do homem nasceu outro

abc do amor

encontro-coito
coito-menino
menino-fome
fome-
amanhã re
começamos.

segunda-feira, 7 de março de 2011

bis

engano-me sempre no pregão
apenas para o poder repetir

domingo, 6 de março de 2011

sept lunes

introuvable derrière les pages
d'un récit désormais silencieux
l'ombre impossible de tes mains
regagne mon corps et me trouve
une place
não mudou em nada
a sonata intemporal
de encontro e fuga
continua bela
a varrer memórias
e a criar cantos onde
param pedaços de flores
momentaneamente
antes de serem o pó
que só a terra conhece
e ama

parto para dentro
e visito os pássaros
que a tua voz me traz

sábado, 5 de março de 2011

aprender o desconsolo e a paz
de querer pouco
ser retirante de um mundo
em agressiva expansão
fazer de uma palavra
nicho
e esconder lá
o nosso futuro
azedou o vinho
também poderia ter dito que
tudo tem o seu tempo mas seria uma pena
mais uma vez estragar esse vinho que entretanto
bebemos

quinta-feira, 3 de março de 2011

do nada
retirámos a gota de água
que nos percorreu devagar
antes de nos matar a sede
e de nos tragar inteiros!

quarta-feira, 2 de março de 2011

9

seul ton corps m'est sacré
ton corps-mémoire
ton corps-soif
ton corps-blessure
ton corps-miroir
ton corps-moi
ta faille
ta fuite
-moi

nous sommes en mars et
je reconstruis tes artères
patiemment en écoutant
comment fait la marée
par où va le fleuve
elles seront puissantes
et comme toujours
infiniment vibrantes

décembre approche



terça-feira, 1 de março de 2011

quando já não formos
a lua será mais lenta
a despedaçar o sol

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

fui sentar-me perto dos que medem as coisas com as mãos sem medir nunca o vazio entre os dedos
e por uma vez
não fiz disso
palavra


rien ne reste de la marée
elle est mouvement perpétuel
des eaux comme des jours
de toi comme de moi

rien ne reste de la trace salée
de tes lèvres

rien ne reste du bruit
de tes mains

il ne reste que la vie
insaisissable




domingo, 27 de fevereiro de 2011

souvenir

sabe-se que uma pedra perdida
continua sempre intacta no seu azul
e que até o pequeno corte que era de a ter
toda dentro da mão e dos olhos
perderá os bordos de ser dor

sábado, 26 de fevereiro de 2011

haverá algures uma ilha
a que queiras chamar utopia

talvez seja já o chão que pisamos

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

le vélin de kupka

je le touche lentement pour sentir sa nouveauté
il ne comporte aucune image fantôme
pour que je puisse être son ombre
et sa nuit
d'une souplesse maritime
léger comme un rêve blanc
il se donne à l'écriture
au dessin
il s'ouvre ainsi
à la fantaisie des mains qui cherchent
aux veines qui le longent et le traversent
ce veau mort-né sacrifié à l'envie d'un chant
ce veau mort-né sacrifié à l'envie du chant des chants

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

promenade

o voo não tem de coincidir com a asa
nem a asa tem de saber que se eleva
a algum céu mais baixo, de um
azul alcançável a roçar o
verde-mar

subir ou descer
é sempre aqui



segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

l'oiseau que tu m'as ramené
survole discrètement les amants
avant de descendre sur les champs
car, à cet oiseau, j'ai ajouté la terre du début du printemps
avec ses fleurs ses ruisseaux cachés et si frais
ses ombres joueuses douces ivres
toute sa splendeur

l'oiseau que tu m'as ramené
s'est envolé et maintenant
il ne reste que nous

para que amanhã não sintas a minha falta
deixo aqui ainda hoje a minha vontade
de te escrever sempre e de nunca
mais te perder de vista

dizias da tua poesia
que estava lá tudo

dir-te-ei sempre
que esse tudo
não chega

e não,
não te deixo
mudar o tempo verbal

le marin a accosté
à l'île qui n'est pas déserte
les murs y sont majestueux et si solides
que même un rêve ne pourrait pas les percer
il a toutes ses clés bien dans sa main
il rentre, toujours

la passagère traverse l'océan
et danse avec le vent

et dans ce temps-là
l'instant d'une vie
bateau ou pas
métaphore ou pas
le poème s'ouvrira
à leur passage

cahier d'un bord
trop lointain
por vezes
morremos um pouco
para não morrer de vez

sábado, 19 de fevereiro de 2011

el agua de tu boca
el mar en tus ojos
la vida toda principia
algún día

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

sem bem querer
o corpo desviava-se
de uma linha imaginária
em que andamos rectos
com propósitos e intenções
alinhadas pelo tempo de um mistério
a que chamam a realidade
e ia de encontro ao teu

sem bem querer
o corpo alinhava-se
por um ponto imaginário
em que andamos coincidentes
na vontade de trespasse e roubo
de posse plena: esse corpo é meu
e dele poderei beber e comer e querer

ainda viver



quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

fazer angústia é fácil
é só pegar em outra mão
e descobrir-lhe a reticência
que era apenas compasso longo
ou ficar à espera do fim da festa
antes que ela possa ter começado

pena que ela não esteja já feita
barata, embalada, prática
que fosse de usar e
deitar fora

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

o regresso

embarquei dessa vez
e ainda me encontro em viagem
tu ficaste e ainda por lá passas para ver
se o comboio voltou para trás e se eu afinal
impossivelmente fiquei
digo o nome da tua cidade como quem se perde
numa rua conhecida e aproveita para descansar
peço água e um café e preparo-me
para demorar

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

ma voix me quitte
je deviens murmure
presque silence

dire, il faut dire
faire vibrer ainsi
une ou deux cordes
puis, dire

cántame un tango
por la tarde

ausência

je ne peux pas faire autrement
je porte, je passe, je reste
sans jamais me décider
pour Ulysse ou Pénélope
moi aussi,
je tisse des noeuds
aveugles et sourds
les noeuds qui résistent
à la morsure de la réalité
et bien sûr
je suis tellement
invraisemblable
que je cherche
et je trouve!
le vrai et le semblable
partout où mes pieds errent

ceci 'est pas un tableau car
je n'ai pas de couleurs
pour toutes les absences
que je dois ramasser
à chaque fois que je regarde
mes mains

ton absence,
une à la fois,
elle suffit

illusion

avant de tomber
l'équilibriste a essayé
de s'accrocher au moment
juste avant, où tout était parfait
en ce moment, l'équilibriste est par terre
juste avant le moment où il a fait son premier pas

disons de l'intimité qu'elle est
un noeud qui laisse passer
la lumière



o avô levou o menino a ver os golfinhos
tão felizes! brincam e nadam, tão perto!
tão meigos! ursinhos serão, mas grandes
e molhados!
a criança ri, encantada
o conto infantil está vivo
e o golfinho
é tão meiguinho!

à noite, o menino sonha
de manhã, acusa:
os golfinhos saltam muito alto
porque tentam voltar ao mar
nadam muito porque querem escapar
brincam para não verem as crianças chorar

o avô leva o menino a ver o mundo
e espera a manhã seguinte
enquanto o menino dorme
e sonha

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

a distância é um primeiro passo
seguido de todos os outros
paramos apenas para
viver

sábado, 12 de fevereiro de 2011

sentidos

a flor colhida
inebria e esquece


sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

pêras, maçãs e um jarro pequeno
flores bravas sobre a mesa
bagas e pão escuro

morta, a natureza?

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

se bastar ao vento passar
diz-lhe que se demore
com o que traz
para contar

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

dehors

ta vie est une forteresse
où l'on trouve tout
le cordonnier et le chemin jusqu'au fleuve
le boulanger et le conteur de rêves dont
on ne pourra plus se passer
même la faille et le vide y sont
même l'imperfection
et la petite déception
d'un jour caché
aux joies
d'un moment d'angoisse
où la fin amène finalement au mur
et les fusils aveugles de la souffrance s'apprêtent
mais voilà que le jour ne se cache plus
et les joies semblent renaître
et elles y sont
à la portée de tes mains
à la portée de tes yeux
et puis la mer
qui t'accompagne
sans sursaut puisque
ta mélancolie trouve toujours une baie
où commence la plage abritée de sable fin

on y trouve les arbres de fruits abondants
et leur urgence

on y trouve les gens d'outre-mer
qui te vendent leur soie et le fil de leurs pas

on y trouve les flûtes et les cordes des assemblées heureuses

on y trouve le musicien manqué et le verre qui le fait sourire

on y trouve la chanteuse dont la voix emporte plus qu'un

et on y trouve tout le temps

ta vie est une forteresse

mes mains ne tiennent plus
je descends du mur
je cherche un arbre et je m'assieds près des racines visibles
le manque de lumière ne me laisse pas savoir l'heure ni

que quelqu'un passe et se dirige vers moi

le vent s'est levé



terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

abril

pasme a rosa
diante do cravo
a luta é a mesma

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

manhã alvorada manhã
noite apenas o breve
pestanejar alegre
ou o dormir leve
leve
noite apenas a luz
que se demorou
um pouco mais
tarda

afinal
escureceu ainda

domingo, 6 de fevereiro de 2011

palavra

acordemos em salvar
todas as letras que caem
impronunciadas
acordemos em lembrar
a breve hesitação
que passou pela boca
que passou pelas mãos
e que nunca chegou
a ser parte de nada

uma língua é também
todos os seus silêncios

sábado, 5 de fevereiro de 2011

Un

en me laissant aller jusqu'au bout
de ton attente inépuisable
je retourne vers toi
je passe
je change
et tu me suis
et c'est nouveau
l'orchestre nous promet
la tormenta
et en me suivant
tu me reprends
le nuage et la foudre
ne font que un
je foudroie le sol
je suis le fouet de ton envie
et la tormenta passe
et l'envie d'être pomme
ou son arbre
grandit
nous la prenons
pour après nous ramener plus bas
qu'on devienne racine temporaire
juste avant la fin du temps
ce moment où aucun de nous
ne peut comprendre d'où vient
toute cette
musique

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Un

il y aura toujours
un dernier tango
et ce sera encore
le premier

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

intenção

fosse isto um fruto e teríamos
a árvore toda a pender de cheia

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

quando a água proverbial esgotar a rocha
e o castelo for pedras soltas na memória
terás a profecia cumprida e longamente
olvidada

segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

modulação

retiro do poema os pássaros e o mar
deixo-os na irreprimível liberdade
de não serem a asa ou a onda
do que me traz a mim
do que me desfaz
crescendo

domingo, 30 de janeiro de 2011

a felicidade

lis de près
et tu sentiras
la douleur

réponse

pas de tableau
pas de mise-en-scène
les lumières sont éteintes

seul ta question m'illumine

sábado, 29 de janeiro de 2011

a praia

debaixo do desconhecimento útil
e bem-educado do chefe
das obras máximas
trias
dou a saber que
um grão de areia
macho ou fêmea
se moveu
na praia
que
ainda não

quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

filiação

Caeiro toma-me das mãos a possibilidade de o escrever
e bebe-lhes o rio em que nunca nadou
eu mesma me bebo
até à sede

não tive mestre e por isso talvez
ainda não tenha nascido

quem me teve
quem me deu

a mim?

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

não há poema onde não se encontre
um pedaço de mar e o tempo
que a onda leva a chegar

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

o brinde

tudo é inteiro

esse caco é apenas pedaço
falha, vaso sem serventia, copo vazio
de todo o líquido possível
esse caco é inútil
fere apenas
não se lhe pode colocar uma flor dentro
não se lhe pode derramar champanhe dentro
não acolhe lágrimas saliva desejos de coisas boas e novas
coisas boas e novas, um caco!
esse caco fere
não podes envolvê-lo amorosamente como dedos
não podes levá-lo aos lábios e deixar que a língua goze na lisura do vidro
não podes encontrar-lhe na borda a forma do mundo
esse caco é agora ferida
a transparência (a manhã)
tinge-se de um rubro negro dor
porque não vês não compreendes
a natureza desse pedaço
que tens nas mãos
tudo te é inteiro

o copo partiu-se

domingo, 23 de janeiro de 2011

ojos de mar

les yeux ont laissé passer le regard
un peu avant le départ
homme et femme
sur un quais de pierre
(sous la pierre, ta sève)

la viajera est rentrée dans le train
et tout est rentré dans l'ordre
les stations et les jours
bien rangés là où l'on
les attend
(sous le livre, tes mains)

le train?
la viajera ne connait que l'océan
elle est ainsi descendue
le coeur débordé
(d'une illusion entière)

les lendemains et les veilles
se retrouveront toujours
dans l'instant
l'eau est tombée
sur la terre

la fleur née de la boue
ne peut qu'être belle

sábado, 22 de janeiro de 2011

Un

ton corps
m'emmène à la terre
l'île secrète et sa mer autour
Glass ou Pugliese
je ne sais plus
mais le corps
continue s'obstine
part
dans l'écoute de ce
au-delà du silence

quelque chose
oubliée ou perdue
pendant le transport
sur la route
autour de l'île
et la mer si près
la perte
quelque chose
oubliée ou perdue
que tu trouves
et ramasses
sans comprendre

c'est à toi?
elle ne m'appartient plus

le corps
continue s'obstine
part

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

minima moralia

nenhuma estranheza

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

Merisi e o lagarto

a natureza toda
coube num dedo
sagazmente mordido

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Para G.

quanto tempo tem um texto dentro
a ti que o levas contigo e que o levarás ainda
depois da última página que é apenas o não haver mais papel

quanto tempo nasce dos instantes em que pensamos compreender?

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

que fazem as maçãs no cesto
o mesmo que no poema
mas menos doces

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

arranjo-te hoje um torvelinho
um laço desavindo dos dedos
e da conjugação

volver

domingo, 16 de janeiro de 2011

sem-data

era seguro o lugar onde o mundo estava
o planalto era o trampolim dos olhos ágeis
e brincávamos sempre na borda dos precipícios
na total certeza da entrega do corpo ao peso do aqui e agora
não haver amanhã era uma evidência que só a manhã desfazia

mas havia gente com olhos a prazo, gente com o olhar gravemente perdido
e não era numa palavra-mágica que de repente os transportasse para um reino
não
era o olhar perdido nos prazos expirados ou pendentes, nos fracassos amealhados
em vez das moedas de oiro que só luziam porque os nossos olhos compreendiam o sol

na rua, ninguém respondia à criança à janela
porque ninguém ouvia nenhum tom
nenhuma cor