quinta-feira, 31 de maio de 2018

Ara


as palavras carregam
a madeira que pisaste com todo o sentir
e o gesto brutal que no-la arrancou
rasgo dentro de mim o verbo
que a reduza a pó ou
que a guarde

as palavras carregam
o incenso que sobe até ao Sul
e o altar onde não me deito
rasgo dentro de mim o verbo
que cale a missa de um ou
que te cante

as palavras carregam-nos
peso-mundo
vão



Herança

coube-me em sorte
cruel quinhão
3 começos

Cartografia

assoma já a onda que nos vai quebrar a todos
por isso, navego calmamente contigo

não me chegou nenhuma data
nada sei desse mar por vir
não me preparo

um dia
visitou-me nitidamente 
a tua futura ausência
corria a madrugada
e nela chegava a
presença audível
do teu abraço
no meu peito

assomava a onda que nos vai quebrar a todos
convoquei Magdala para que nos afundássemos juntas
na voz de Laborde lobo náufrago eterno

cabeça simplesmente na almofada
adormeci

não me preparei
não sabia

acordei num dia completamente novo
e rodei o compasso pelo gozo da roda

assomava-me o teu nome aos lábios e aos dedos
temos todos a mesma idade nesse primeiro dia

meço a onda pelo cruzamento de distâncias
concluo que nos afogamos

nascemos no mesmo mar que nos há de quebrar

la última noche
el punto final

rodo o compasso calmamente
posição estimada
adentro




terça-feira, 29 de maio de 2018

20 watts


reparaste
o mundo encolheu
o mar secou

o coração
besta mecânica
galopa sem freio

debate-se
não entende
paredes brancas

agarra-se
ao seu próprio som
dança ainda uma vez

e esperança-se

descremos os dois
reparaste
do fim

mundo rochedo
fio de sal

os físicos postulam
que o meu tempo e o teu
existe existiu existirá

descremos todos do fim

o coração
besta mecânica
galopa, desmedido

e esperança-se

mundo grão
gota

nada a fazer
dano irreversível
máquina desligada
off

por 20 watts

o coração
grão
gota





domingo, 27 de maio de 2018

Salavina

espero pacientemente
que o piano de Ariel Ramírez
nos não acompanhe assim
nos não fira assim
boca de mar imenso
engolindo o correr dos dias


El Maipú

mudaram o chão onde caminhavas
a madeira guarda tudo, como nós

tábuas de prazer e mágoa
pedaços de vida

entram os moços inocentes na sala
vêm recolher o que é apenas chão
rasgado e irregular
não serve já
não sabem
ainda bem

carregam tudo rapidamente
não há tempo a perder!

não há tempo a perder
temo-lo ainda todo

pedaço-chão
inteiro

sábado, 26 de maio de 2018

palavras roubadas em contra-mão

viví
para que esta pena
desaparezca






quinta-feira, 24 de maio de 2018

só assim se pode dizer:
morir de amor

morrer de morte lavrada em auto, não
morrer de homenagens derradeiras, não
morrer de lápide e fotografia, não

afasto todas as mãos que não te cuidam
mordo quem de ti se abeire de cara tapada
escorraço coveiros e comadres
mato os abutres
convoco deus
o teu

digo-Lhe
morir de amor

era esse o único plano
era esse o único plano!
depois, um dia, sim, morrer apenas
da morte de decidir a cor do caixão
da morte que guarda relíquias em gavetas
da morte que chora, recorda e depois esquece

morir de amor é a única morte possível
a única que sabíamos
a única que dizíamos
tempo adentro

digo-Lhe
este é o nosso mistério
nunca O alcançarás








terça-feira, 22 de maio de 2018

Improviso para te levar ao baile*

viajo para a frente
estou prestes a ler o improviso
que arrancarias destes estranhos dias

vou a tempo de te dizer que não é verdade
que me fuja sempre o pé para a dança do adjectivo
vou ainda a tempo de te contar Paris de luz apagada
Paris sem Prévert nem Blake
cegos ambos para olhos de mar que me tragam
songs of innocence and of experience
Paris sem tangos cantados a meio da tarde no boulevard
incessantes partidas e portas fechadas

estou a tempo de te contar
e esperar pelo que vais tecer
que andei pelos cantos do Sul
que saberias reconhecer

excepto um

o nicho perfeito, a pele quente
o compasso de espera
antes





* Para o Ademar Ferreira dos Santos
   09/12/1952 - 22/05/2010
 


segunda-feira, 21 de maio de 2018

7 noites

ainda não

nesse dia (pela manhã?) acordaste
como todos os dias
e levantaste-te
corria o massacre em Gaza
escreviam-se poemas sobre o massacre em Gaza
escreviam-se poemas sobre o violentíssimo desaparecimento da Realidade
faltavam palavras para falar dos que tombavam
a menos que nos explodisse o peito
nesse dia corria o dia de hoje
a Realidade avisava
esse dia é hoje
recebo os pedaços do teu peito
recebes tu os meus
no mundo possível da manhã do dia catorze
recuemos um pouco
treze de Maio
tranquila me dizia
se me tivesse inquietado
se me tivesse pressentido num dia como o de hoje
se me tivesse prevenido com as teorias e postulados dos Mundos Possíveis
e te tivesse gritado para não me deixares ver o dia de hoje vinte e um de Maio?

se pudesses ver como o princípio do tempo se parece tanto com o seu fim

a rapariga com olhos de caleidoscópio que encantou os alunos esta manhã chama-se
Lucy (in the Sky with Diamonds)
o Miguel que veio da Galiza, como a María, dá-me versos sem querer, pão amargo para a boca
daquele mate parecido com o gosto da tua língua na minha
na camisola do petiz enamorado esta manhã lia-se LEIBNIZ em grandes letras nas costas
ainda o filósofo a rondar-nos com todos os seus mundos possíveis às costas
e nós que lhe damos razão porque
ouve:
como teria Leibniz imaginado que chegaríamos aqui
a este amargo dia sem mate
sem ti?



 

domingo, 20 de maio de 2018

Arresto Doble

bailavas essa redonda privação da liberdade
sempre pela última vez
cerceando a minha
rodeando o meu espanto
com afagos que queimavam

caminhavas como quem grita
coroavas como quem ama
para logo te afastares
tímido agora

tantos e tantos anos de palco
e a modéstia inteira

mas onde quer que eu te visse
aquele chão era teu
todo teu

a liberdade era minha
toda minha

arresto doble, corazón






Nombre

ya lo sabés, escribirlo, escribirlo hasta que se vaya!
al diablo la calidad y la métrica!
al diablo la ortografia y el idioma!
Todo es bueno, todo sirve
cuando comprendemos
un corazón
el tuyo
todo se hace claro,
bonitooo!
te encuentro de tantas maneras ahora...
vos sabés
y sabés como de un verso al otro
todo cambia
así que ayúdame a escribirlo
hasta que se vaya
a cuatro manos y un corazón
hasta que se vaya la nube de hierro
este horrible descompás
que nunca previmos
te sabía ahí y
a veces me iba
porque te sabía ahí
a veces me hago hoja cuando sopla el viento
y sigo caminos que son solo mios
otras veces me nacen raíces
que nada arranca
que miedo nos dá, a los vagabundos, un solo lugar!
ese lugar onde estás vos, es libre?
se puede ser hoja y arból al mismo tiempo?
hay buena sombra, largos caminos y buen piso para ronda de dos?
y se puede imaginar, creer en otra cosa y entristecer un poco alguna vez?
de un verso al otro, todo cambia
se me olvidó, perdona
siempre estabas
siempre estarías
y ahora hago preguntas al caos
hasta luego, solcito



sábado, 19 de maio de 2018

quadra viva

não se sabe desde há quanto
se choram os mortos assim
tacteando o mistério
adiando o fim

Uno



deixámos o ver e o ouvir
e fomos em busca desse sentir
que Marino canta como perdido
que Marino canta como perdido
apenas para que o vamos buscar

Prece

quantas vezes te disse
todo o tempo do mundo
era a nossa medida
mão-cheia de tudo

temos todo o tempo do mundo
teremos todo o tempo do mundo

não era soberba, nem desafio, ó Deuses!
não era menosprezo pelas vossas sábias leis
que rodam e rodam e rodam sem olhar a quem!
era outra coisa
era a nossa lei
a única lei das mulheres e dos homens que se encontram

sentem-se um pouco
larguem as setas e as rodas e vejam-nos bem
o que seria de vós sem os nossos corpos e emoções?
o que seria de vós sem as nossas promessas e esperanças?

poupem a roda a quem está por Eros ferido
poupem a roda a quem o reconheceu e escancarou o peito!

prometemos nada dizer.














sexta-feira, 18 de maio de 2018

Nico...

a outra ponta do laço
tinha-la tu
se soubesses o que custa
tenho a certeza que voltavas
tomando mate no pátio da casa
voando em zamba ao meu encontro
e depois juraríamos de novo pelo presente
o mais sagrado de todos os tempos nossos
tempo do sentir
tempo do querer
é absolutamente inútil pôr em verso
o que a morte nos roubou
nenhuma palavra chegou para dizer a felicidade
nenhuma palavra chega para dizer a perda
eu não tinha outra ambição
queria apenas não morrer
antes de te voltar a ver

não sou capaz de entender o que significa
já não estares
se eu estou

Al Compás


cada vez que lata mi corazón
latirá el tuyo



quarta-feira, 16 de maio de 2018

tempo inteiro

há uma canção árabe antiga que se parece com o teu silêncio
espera devagar que as cordas desenhem
nos dedos do tempo
as minhas mãos
no Goya
às 6




segunda-feira, 14 de maio de 2018

A Inauguração


chegámos ao fim dos tempos
explode-me o peito de não ter palavras
que te levantem para que ouças que afinal
a pedra da injustiça não ergueu paredes
a bala silva só a canção do surdo
e nunca a nossa
nós, os que ouvimos
nós, os que sentimos
amarga-nos o gosto do metal e
sangramos quando feridos
a lança ou palavra
pesa-me que não te levantes
queria dizer-te que sinto os lábios secos
com tanta poeira da história
sei e sinto o gosto do sangue
de quem ainda fica um pouco mais
e se despede devagar da ilusão do chão comum a que chamamos humanidade
mordo os lábios devagar e desfraldo a única bandeira a inaugurar
o único lugar soberano, chão de mar e vento
que nunca mais poderei nomear

cai o pano largo


Gaza-Lisboa, 14 de Maio de 2018