quarta-feira, 9 de dezembro de 2020

Azul*

de zamba

azul da manhã 

em que a chuva não parou

não a deteve a estranha que me avisava

não me deteve a ponta metálica do guarda-chuva

toques insistentes de quantas Parcas que me enviaste?

seguimos, segui viagem até ao cais

repeti o passo pisando a areia do ano em que te perdi

ou a de ontem na praia da Ribeira das Naus

onde naufragam sonhadores e inquietos

azul de zamba

azul da manhã em que sabemos

que apenas passamos

y

te llevó la tarde

rumbo a su misterio


*À memória de Ademar Ferreira dos Santos,

  nascido num dia como o de hoje.



domingo, 6 de dezembro de 2020

Y

quantas vezes te fotografei o sol escondido

nos braços leves da chuva

bailando os dias

sem corpo

e quantas vezes me sentei contigo a desenhar

os dias que Goya passou em Londres

entre trevas domesticadas 

e anjos azul-mar


vens de um longe

que não sei medir

mas sei amar 


Clarão

luz

ao longe

quase fátua

que ninguém viu

assim somos todos

assim são os nomes

que os séculos sopram

e os livros graves encerram

assim as linhas de sangue 

e a fotografia de dias felizes


todos um dia mereceram uma linha 

que o cosmos sempre apaga


é noite ou é dia, tanto faz, 

tudo conspira para nos sossegar

esconde-se o silêncio, o ricto final 

e a inutilidade das esforçadas marés

o pássaro de há pouco que já não faz sonhar

os grãos de areia da tarde mais memorável do mundo

depois de ele acabar


esconde-se de quem não viveu que não havia mais vida

que aquela atenção profunda ao som metálico da passagem das horas

que nunca passaram nem voltarão a passar


luz

tão longe


terça-feira, 15 de setembro de 2020

Le Rideau Rouge*

je refais mes pas

je le savais bien que

en traversant le Canal Saint-Martin

juste après le pont

quelques pas de plus

le rideau s'ouvrait

rouge profond et flamboyant et

juste avant la grande scène

tes bras et ta joie

ta joie entière!

comme si je revenais d'un trop long voyage

comme si le moment-en-scène était là,

le roi-temps et sa reine,

toi 

et ton là-maintenant

de grande magicienne


Mesdames et Messieurs!

voici le mystère.



*À la mémoire d'Angélica Chemla.


segunda-feira, 7 de setembro de 2020

Orfeu

há um espanto nos velhos 

vêem redonda a vida que estava ali

o casaco desordenado num canto se

tivessem entrado sem perguntas em alguém

a cicatriz de uma queda no mais belo penhasco se

tivessem aberto o mapa como uma criança

os olhos cansados de não dormir se

tivessem ido até ao fim do medo

o fim das amarras

o começo da viagem 

e da nuvem que baila os ventos

se


segunda-feira, 31 de agosto de 2020

The End

 não saias nunca antes de todas as luzes do cinema se apagarem

nos créditos está o nome da canção que te salvará 

e quando tropeces na certeza de que já não há nada mais a fazer ali

esse minuto a mais, é esse que a morte te desconta por distraída

com o que farás ainda numa sala onde tudo já acabou

quinta-feira, 27 de agosto de 2020

Moldura para T2 com vista

quantas gerações durarás, talvez três
talvez dures um feito único 
alguma história que alguém repita e repita
um gene reencarnado na poeira que levantam os meus pés 
ao pensar-te

tudo o que guardas com amor é já pó
toda a memória é já ficção
tudo já foi

quinta-feira, 13 de agosto de 2020

Fonte

 estava inscrito no cântaro que sim

que se pode sentir de todas as maneiras

pegar na asa e sentir-lhe o barro sujo da fome

beber a água fria e desejar o sal lá longe

seguir a gota que se escapou dos lábios

e perder-lhe o rasto rapidamente

com o cântaro pousado

despem-se devagar as mil maneiras

de nos emparedarmos

as frases fósseis e a certeza morna

o mundo-lego triste da infância sem liberdade


a gota desapareceu toda no mundo em mim

humedando o eterno senso

da vida

segunda-feira, 13 de julho de 2020

Sobras

reconheço o cartão que o sem abrigo avalia com cuidado no lixo
pedaço irregular de papel prensado que acolhe e conforta
é a mesma hora e a mesma brisa e a mesma noite de Verão
recolho as palavras que ainda sobram para comer a dor
e entro dentro de casa.

sábado, 4 de julho de 2020

877


essa parte do teu sal que não se perdeu e entrou em mim
essa parte de mim que não se perdeu

coube-nos essa sorte
e este fim.

quinta-feira, 2 de julho de 2020

lama

o precipício tem lugar para todos

campa rasa e modesta

de pó e chuva

a verdade no declive

o sentido no embate

depois, é tarde

sexta-feira, 22 de maio de 2020

Dez*

somos tantos e tão iguais
conto-te ou não?
os que ainda estão
fazem contas à vida
apanhados na globalização
do silêncio e o do espanto
confinados ao momento
e à condição

a partir de hoje
conto-te ou não?
já não me chegam os dedos das mãos
para dizer a tua ausência
já não me chegam as saudades para tirar-te
do fundo de todas as coisas que rasgam a calma

conto-te
tudo é o mesmo ainda
mas mais calado
mudos a olhar o passado
e nem o diabo nos quer a alma
nem os deuses nos querem criar

a partir de hoje
dizem que tudo mudou
na passagem do momento
conto-me a mim
e a ti


*Ademar Ferreira do Santos, 9/12/1952 - 22/05/2010