domingo, 14 de dezembro de 2014

amarras

no corredor novo e melhorado do sonho
passam aqueles que sabemos serem dois
também o metro é novo e branco 
vai de montparnasse a lisboa
por que voltas, não se sabe
agora está pronto a ir

lado a lado perto
peito oblíquo ao tempo
entram os dois mas apenas um
fica do lado de lá da porta firme
já invisível

não se sabe quem tomou a decisão
mas quem ficou não pôde ficar
saltou para o nicho estreito
lugar reservado aos loucos
sem lugar

fim à vista! ouviu-se do mastro
- o que é uma roda de ferro
senão a força do mar? -
lado a lado longe
peito face ao tempo

poema para tango

amanhã, caço o instante:
como-o e ei-lo meu!

quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

Tales from aboard the Louxor*

regressar a Ítaca bordando os fios desfeitos
e deles fazer as mãos que rasgam o tempo
em bocados que a maré trouxesse 
como algo ainda inteiro
memória afinal é coisa
de futuro

* para J. e L.

segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

poema para celebrar*

ouviríamos a milonga triste
bailaríamos a sentimental
e não nos escaparia nenhum acorde
e não nos calaria nenhum silêncio
neste tempo 
cabemos tu e eu 
e a eternidade

antes das velas,
um desejo.



*para o Ademar, no dia do nosso aniversário 

domingo, 7 de dezembro de 2014

Dístico para traduzir*

bloom is the only state flowers can hold
a reclining verb on a given day


*para a María Alonso Seisdedos

domingo, 9 de novembro de 2014

pormenor*

flagrante comissura
mar leito de rios
mar dos naufrágios
mar gota a gota
lábio inferior
lábio superior
boca
geografia exacta
do desejo escultor
na trégua da palavra
resvalo doce
e temível
que o pintor louvou 
ponte barca águas
onde corre ainda
o ciúme de Baco
o amor da Tágide
canto em chão d'exílio
ouço descalça o vibrar
do tempo de 
vagar meu
rosa de carne e alma
o teu beijo

*Retrato de Camões, Fernão Gomes

terça-feira, 4 de novembro de 2014

Marfisa

ainda se vêem os laranjais
de antes de serem doces
davam para o passo corrido da tarde
das palavras rodeando as mãos
dos olhos tombando noites

domingo, 12 de outubro de 2014

calíope sem camões

peca por breve e seco

mais pecaria longo

cheio de ti

segunda-feira, 29 de setembro de 2014

a mão

como resistir à última maneira de dizer

talvez deixando uma nesga de fracasso

um naco de pão arrancado

repeti-lo: imperfeito!

nunca nada é infinito

nunca nada é derradeiro

domingo, 28 de setembro de 2014

daqui a pouco será noite, diz o dia
daqui a pouco nasce a luz, diz a treva
de nada nos serve o silêncio

quarta-feira, 24 de setembro de 2014

beira de mar

sei tudo sobre ti
esse, esse pensamento!
não falhou ao atravessar-te
como este que em ti se quedará
talvez não creias
talvez digas que as palavras são ausências
e os pensamentos omissões
que hoje foi um dia a menos
que hoje a vida é sempre
um dia a menos

se tivesses ao menos um punhado de areia
e vê-la escorrer serena por entre os dedos
e, criança outra vez, cerrar o punho
e repetir tudo de novo

ambulante

até a margem tem um centro
e nele caminha de passo incerto
como quem evita a quase queda no quase rio
a menina da borda d'água

do pudor

acaso grande aquele o de
ter um casaco escuro
corte perfeito

depois de nu ainda
o envergava


quarta-feira, 17 de setembro de 2014

Saturno ao espelho

virar as costas é ainda e cada vez mais
sentar-se lado a lado nas sombras
que o tempo aumenta
ponteiro ímpio
e nu

quarta-feira, 10 de setembro de 2014

do tesouro

há outras passagens
não acordes o adamastor

desengano

dísticos, dizes?
apenas?
acrescentate-te, pois!

A carta

P.S. Esqueci-me certamente de te dizer
       algo que seria talvez determinante.

sábado, 16 de agosto de 2014

agosto

desta vez
trouxe o azul nos bolsos

segunda-feira, 16 de junho de 2014

le journal intime

viver
não conta


terça-feira, 10 de junho de 2014

le beau temps

dito assim
parece que é

quinta-feira, 22 de maio de 2014

Para ti, 4 anos depois

olho para a curva da estrada e leio o pessoano aviso:
passou por aqui hoje e não voltou o homem com nome de mar

quinta-feira, 8 de maio de 2014

poema para colorir

anunciaste um castigo terrível
se a cor passasse da borda
que a minha mão tremeria
que tremia já e ainda
nem borda havia

desenhaste-a
forma finita e perfeita
lápis cego das limalhas
que escorregavam pela linha do real
e se perderam no papel 
e no ar que beijei com a calma de ser assim

ficou em branco a tua forma perfeita
molde pequeno para os meus olhos

preencho com mão incerta 
tudo o que fora nela
ficou 

terça-feira, 8 de abril de 2014

poema para quem não sabe durar

amo tudo o que ainda não é
amo tudo o que poderia ser
amo tudo o que está sendo
amo o declínio do verbo
sem tempo

segunda-feira, 31 de março de 2014

pretérito muito imperfeito

era molhar a língua nas esperanças do outro
e assim dar-lhe a beber da santa água do desejo
era comer a fome alheia e dela fazer o pão dos dias
espiga farta por entre dentes que ferem 
entre lábios demasiadamente confiantes
e da gota de sangue brotar a rosa
ou o doce espinho da dor
era derrotar a imensidão
de não ter que viver 
era a brevidade
de ter de amar
era assim

sábado, 29 de março de 2014

onda

encho-te as palavras de silêncios
como quem subitamente
vê o mar

segunda-feira, 24 de março de 2014

les sirènes hurlantes*

espero pelo dia em que terei saudades dos encontros que marcávamos
para me dares em primeira mão as tuas novas gravuras 
lembro-me de cheirar no papel o grito de sal 
em que ainda perdes os dias


*ao Manuel.

sábado, 22 de março de 2014

poids et mesure

il est léger
le silence de se laisser aimer



quarta-feira, 5 de março de 2014

o colar

um único adorno
um silêncio amordaçado

dentro dos nós, as voltas
dançam as mãos redondamente

o colo nu espera a sombra
das contas de vidro

dos verdes húmidos
da ameixa escura

losangos apertados
como esfinges

dedos hábeis
como amantes

desfaz-se o colar
na sua inteireza

rolam contas
pelo colo










segunda-feira, 3 de março de 2014

da necessidade

comem da mesma fome
bebem da mesma sede
em tudo o mais
são livres


domingo, 2 de março de 2014

do erotismo

encontra-lo na gota de rio bravo que corre livre entre as margens:

o corpo diante da bagagem desordenada

antes da viagem





sábado, 25 de janeiro de 2014

a infração

contou-me o prisioneiro algo curioso
todos os dias ao acordar media as paredes da cela
a porta, os caixilhos, roda-pés e ladrilhos e só então deixava o dia começar
satisfeito, conferia com rigor a relação harmoniosa entre altura e comprimento
satisfeito, conferia que tudo estava como ele o antecipara na véspera da véspera
satisfeito, adormecia no instante seguinte

mas num despertar 
numa aurora que ele não conhecia
e por isso espantado se maravilhou
(o que seria!)
mediu, mediu, e nada conferia
nenhum ladrilho igual ao outro
alturas que desabavam de tão altas
comprimentos que se perdiam no infinito
roda-pés como quem entra no primeiro baile

era afinal o primeiro dia de liberdade
e não teria outro
o espanto é a mais grave infração
faz com que tudo comece

agora, é a ele que meço
todos os dias ao acordar o meço
e estão lá também as portas e as janelas e os ladrilhos e até
os roda-pés e todas as larguezas e belezas e infinitas possibilidades
tudo isso meço, meço, meço

e mais não disse.

quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

a cheia

olho para mim a olhar para ti 
e o Tejo toma-me da margem
o descanso

por bem que estou distante
por mal que estás aqui

quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

no gume



chama-se a este objecto útil um abre-cartas
é de madeira fina, dessa que gostaria de ter sido
folha cheia de tinta

serve para abrir de golpe liso e seco 
e assim ferir de morte incerta 
as palavras que se confiaram ao destino 

sabe-se lá que deus pelo caminho as mudou

sabe-se lá se a flor chegou pedra
se o rio que era fonte
secou e é agora
gota

sabe-se lá se alguma palavra
no caminho tropeçou e ficou para trás
pronome pessoal perdido já da mão humana
nas arestas da vida

certa é a espera em que pousada vive

a carta fechada chegou ao destino
tinta preta, era só o que tinha





 






segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Para G.

ninguém diria que
dois queijos e duas empadas
coubessem tão bem naquela caixa

mãos cuidadosamente exactas
dias exactamente dispostos
quem diria

que a sabedoria assim 
se dispusesse?

o mago que tudo sabe e nada diz
esperava os últimos aniversariantes

duas taças de leve champanhe 
duas rodadas tarareando 
em eterno compasso

também assim vamos pela vida
dispostos a essa sorte imensa

de estarmos





segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

do sentido

como quase tudo
também isto se explica
se lhe encontrares o contrário