sábado, 25 de janeiro de 2014

a infração

contou-me o prisioneiro algo curioso
todos os dias ao acordar media as paredes da cela
a porta, os caixilhos, roda-pés e ladrilhos e só então deixava o dia começar
satisfeito, conferia com rigor a relação harmoniosa entre altura e comprimento
satisfeito, conferia que tudo estava como ele o antecipara na véspera da véspera
satisfeito, adormecia no instante seguinte

mas num despertar 
numa aurora que ele não conhecia
e por isso espantado se maravilhou
(o que seria!)
mediu, mediu, e nada conferia
nenhum ladrilho igual ao outro
alturas que desabavam de tão altas
comprimentos que se perdiam no infinito
roda-pés como quem entra no primeiro baile

era afinal o primeiro dia de liberdade
e não teria outro
o espanto é a mais grave infração
faz com que tudo comece

agora, é a ele que meço
todos os dias ao acordar o meço
e estão lá também as portas e as janelas e os ladrilhos e até
os roda-pés e todas as larguezas e belezas e infinitas possibilidades
tudo isso meço, meço, meço

e mais não disse.