sábado, 25 de janeiro de 2014

a infração

contou-me o prisioneiro algo curioso
todos os dias ao acordar media as paredes da cela
a porta, os caixilhos, roda-pés e ladrilhos e só então deixava o dia começar
satisfeito, conferia com rigor a relação harmoniosa entre altura e comprimento
satisfeito, conferia que tudo estava como ele o antecipara na véspera da véspera
satisfeito, adormecia no instante seguinte

mas num despertar 
numa aurora que ele não conhecia
e por isso espantado se maravilhou
(o que seria!)
mediu, mediu, e nada conferia
nenhum ladrilho igual ao outro
alturas que desabavam de tão altas
comprimentos que se perdiam no infinito
roda-pés como quem entra no primeiro baile

era afinal o primeiro dia de liberdade
e não teria outro
o espanto é a mais grave infração
faz com que tudo comece

agora, é a ele que meço
todos os dias ao acordar o meço
e estão lá também as portas e as janelas e os ladrilhos e até
os roda-pés e todas as larguezas e belezas e infinitas possibilidades
tudo isso meço, meço, meço

e mais não disse.

quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

a cheia

olho para mim a olhar para ti 
e o Tejo toma-me da margem
o descanso

por bem que estou distante
por mal que estás aqui

quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

no gume



chama-se a este objecto útil um abre-cartas
é de madeira fina, dessa que gostaria de ter sido
folha cheia de tinta

serve para abrir de golpe liso e seco 
e assim ferir de morte incerta 
as palavras que se confiaram ao destino 

sabe-se lá que deus pelo caminho as mudou

sabe-se lá se a flor chegou pedra
se o rio que era fonte
secou e é agora
gota

sabe-se lá se alguma palavra
no caminho tropeçou e ficou para trás
pronome pessoal perdido já da mão humana
nas arestas da vida

certa é a espera em que pousada vive

a carta fechada chegou ao destino
tinta preta, era só o que tinha





 






segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Para G.

ninguém diria que
dois queijos e duas empadas
coubessem tão bem naquela caixa

mãos cuidadosamente exactas
dias exactamente dispostos
quem diria

que a sabedoria assim 
se dispusesse?

o mago que tudo sabe e nada diz
esperava os últimos aniversariantes

duas taças de leve champanhe 
duas rodadas tarareando 
em eterno compasso

também assim vamos pela vida
dispostos a essa sorte imensa

de estarmos





segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

do sentido

como quase tudo
também isto se explica
se lhe encontrares o contrário