quarta-feira, 27 de junho de 2018

O anel

o extraordinário punho 
apoteose e fim 

creio no rosário
contas de pele

fantasia redonda com
deus de permeio

saqueaste o mar
ferreiro e forja

e eu prata
sopro

corte fundo
corte fundo

estamos ainda
ambos no mundo

na terra húmida dos
sonhos enterrados

travessia cega
mar nocturno

recolho-me náufraga
chega-me o teu eco

se nascesses agora
apoteose
e fim





segunda-feira, 25 de junho de 2018

Garras



era assim que começavam as linhas
que não cheguei a escrever
rasgava setembro
cinco dias
inteiros




domingo, 24 de junho de 2018

monarca

acabou-se a música
arrancaram o chão
todos se foram
sobra um acorde
que nada cala
tríade menor
de dois
dentro

lá fora
os corações pequenos e os notários, juntos
conferem gravemente da inutilidade de assim bailar
pois não há música nem chão nem nada que nos justifique
e nem o confessado assomo do amor aos lábios que tudo estremece 
basta
decretam o fim da memória 
e do seu esquecimento

insisto
houve um chão
houve música
houve gente

lá fora
recolhem diligentemente as flores caídas
retiram as coroas e os laços para um lugar conveniente 
onde tudo será cinza depois da última porta fechada pelo lado de fora
calada alquimia entre fogo flor e lágrima
dentro
a homenagem acabou
decreta-se o retorno
ao real

lá fora
o voo transatlântico da borboleta
cruza com espada de ferro as vossas crenças

quarta-feira, 20 de junho de 2018

Borda

sucessão e ordem
passam os dias

(aquele momento
engoliu o tempo todo)

sucessão e ordem
passam os dias


Trasnochando


vem o teu passado ter comigo
num gesto mal medido
num golpe fero

interponho-me

atrás, a máquina do tempo
coreografa tudo

peço a palavra
por um ausente

gesto breve
que te cuida

abro a arca
corpo fechado

houve um tempo
em que te esperava
as veias abertas em teu nome













quarta-feira, 13 de junho de 2018

Legado*

que importância tem o depósito sentimental
das coisas a que chamo tuas?
amanhã virá o executor
reafirmar que já não és
dono de nada
tudo nos foi legado, repartido em
tecidos vivos de memórias
histórias e sentir
o corpo amargo
o corpo amargo de
não sentir a vontade do teu
também ele nos foi legado
omphalos a quem faltasse
o cordão original
corte inútil
marca tua
eu, que te criei
tu, que me nasceste
somos parte eterna de tudo
e seremos ouvidos
convoco o executor, o carrasco e o criador
para traçarmos juntos o plano destes trinta dias
a mais
faço ver que a roda que movíamos ao contrário do tempo
pode agora avançar e que te espero no Goya às seis da tarde
sujeitos ao céu aberto e à terra fremente
sem mais abrigo que o querer

rejeitamos mortalhas e milagres
trinta dias é um breve estremecer
nas cordas eternas da vida

fecho-te os olhos com os meus
amparo-te a queda
recebo-te





*poema para refazer o dia 14 de Maio de 2018,
para vos.






segunda-feira, 11 de junho de 2018

Chico

são muito azuis, os olhos que não vi
é nossa, a cidade maravilhosa
submersa nos futuros amantes
que não sabem que nada
é p'ra já
tomo-lhe as palavras
levo-as a tempo
nós sabemos
tudo já foi
tudo será
caem milénios
neste momento em que
não criamos nada
recebemos tudo
poemas azul-buarque
lenço azul-amante
que deixaste cair

sábado, 9 de junho de 2018

100 metros

começaste a não estar há tanto tempo
que o momento exacto de não estares
parece-me aquela imperceptível aceleração
que faz com que apenas um ganhe a corrida
corremos todos atrás de ti e reconhecemos a tua vitória
ficámos para trás e agora andamos a passo a recolher os possíveis
talvez te lembres que te dizia ter começado a entender passos e rotações
talvez tenhas entendido que toda a felicidade está em começar e nunca em ganhar
ainda assim,
aceleraste.

teoria de tudo

ao encontrar todos os valores possíveis
resolvo a incógnita, reponho a verdade
x igual a tudo o que é possível
x igual a si próprio
x nada

depósito de ossos e sonhos
a terra resolve todas as equações
na mais perfeita e longa igualdade

a alma cabe dentro de um saco plástico
o anseio cabe todo dentro de seis letras
a vida é um rio que se ri à gargalhada
das nossas reflexões na margem
sábios de calças arregaçadas
ponderados no sofreramar

jodorowskys a martelo
joderowsky para os pobres
olhos redondos de quem diz
que anda por aí uma incógnita solta
e a cala para parecer mais alto quando anda na rua
x não é igual a um metro e talvez oitenta de jactância

muito mais gosto, ó terra, de quem sabe
que nunca houve mais nada a saber
vão, vêm, estão

= matar-nos
          há



sexta-feira, 8 de junho de 2018

paisagem

apoio a minha vida no torso que me recebe
faço-lhe frente e respondo-lhe surdamente
a partir daqui é só caminho e juro-te
atravessámos montanhas
não to disse ainda?
regressa.
torso corda larga de guitarra antiga
os teus dedos na curva onde começa o corpo
consolo breve por sermos dois
chamamento perto 
esteio
torso esteio largo
encosta e precipício
regressa.
sei que um pouco mais à frente
de golpe, sem aviso
a paisagem muda
tangente de dentro de não sei que demónio
raso a parede cheia de falhas agrestes
e a montanha segura de há pouco
é agora rocha impassível
e vertigem
regressa.
do sangue não nascem flores
e se nascessem seriam rosas carne
espinhos arrependidos de todo o mal
sonhos fulvos de uma manhã de outono
ainda intactos
regressa.






terça-feira, 5 de junho de 2018

rogo a memória alheia
que te traga até mim

eras muitos
quero que sejas mais

desses pedaços faço história
que gravo nos olhos de quem me olhar

pouca gente o sabe
mas vivemos tudo sempre

bastou que uma vez
o tivéssemos sentido

mas rogo, sim, rogo,
a memória alheia
que te conte
mais

neste eterno baile
preciso ainda e sempre
que sintas comigo
que sintamos juntos
os acordes de um passado
que vivemos, que temos de ter vivido
cada vez que caminh⧜mos
ao contrário do tempo

só mais uma vez

contame



segunda-feira, 4 de junho de 2018

antes de atravessar (dia de sol)

não imagines nada
a vida é a exacta sensação
de um momento


domingo, 3 de junho de 2018

passaste todo para mim
e assim te levo dentro
mordo os lábios
e o teu sangue
escorre-me
puro sentir
mais nada
mais nada
















sábado, 2 de junho de 2018

Epitáfio

ir apenas quando se acabassem os sonhos
ir depois do último desejo
ir sem pena

tenho o teu epitáfio por escrever
teimas em viver

escondo a data e baralho as horas
entro no comboio de madrugada
entro na paisagem onde estás
os monstros são claros
deixam-se acariciar
penso que talvez seja
uma estranha passageira
que se levanta a meio da viagem
e sonha que sai do comboio em andamento
para entrar no gelo branco e quente do desconhecido

está gente à tua espera
faltaste ao ensaio
e ao dia

há quem encerre desejos como se fossem portas
há quem guarde sonhos com papel de embrulho
há até quem deite fora as penas
às segundas, quartas e sextas
junto com o lixo doméstico
indiferenciado
e diga ele
e não tu

a gente que te espera
guarda o tempo que te faltava
para chegares ao fim de todos os sonhos

não se escrevem epitáfios com fios do real
bem atados a quem somos
aqui não jaz
ninguém