domingo, 26 de dezembro de 2021

Penhasco

há na ilha um lugar 

frente a um espelho sujo

frente ao mar que afoga os seixos

entre vigílias e tempos mal medidos 

a posta restante

do teu olhar 


o que sobra da roupa encharcada

na luta de outrem?

quem beija a palavra certa

que faz Caronte esperar um pouco mais?


conto eu a história por ti

rasgando as noites

nas tuas ondas






sábado, 25 de dezembro de 2021

Conjunto de seis copos

 nunca ninguém bebeu por aqueles copos

estavam guardados para uma ocasião especial

passaram os anos e ninguém entrou para celebrar

seis cores juntas e por isso mais belas ainda

um conjunto que parecia chamar a sede

dos mais doces vinhos

soube-se que foram vendidos em perfeito estado de conservação

minuciosamente resguardados de toda a perturbação:

pó, sol e as mãos sujas 

do imprevisto 

correctos, limpos, inteiros

nunca ninguém lhes poderia apontar uma falha

(a tristeza não mancha)

(o vazio não quebra)

talvez não tenham sobrevivido depois

algum excesso, algum descuido

e o tempo

o tempo

tiveram o mesmo destino afinal

todos 


terça-feira, 14 de dezembro de 2021

Bleu-nuit

topografia de vida

sem mais nenhum registo do que

Caeiro em casa e

Penélope sem esperança


 


quinta-feira, 9 de dezembro de 2021

Ossos*

um sopro mais e 

rodopiamos no salão grande

da eternidade

o vento leva-nos 

com as outras poeiras

e nem as estrelas já

nos distinguem

na roda


nada mais há

senão a eterna ficção

e o vago rumor

da memória


mas hoje

apenas hoje

ajeitas os óculos

e estremeces um pouco

para me desejares boa viagem.


*Para o Ademar, sempre.





terça-feira, 7 de dezembro de 2021

morte em Veneza

ainda que debaixo jaza a humanidade toda
e em redor soem todas as pressas e rotinas
não o sabes já

a laguna sobe e desce sem emoção
o mundo gira indiferente
ainda que nele se agite
o tempo

o poema na gaveta vale tanto
como o manuscrito reverenciado
já viste como não duram as mãos
nem os olhares?

conheci o último humano
ontem