segunda-feira, 29 de março de 2021

all night

sabíamos que éramos imortais

a madrugada era sempre o novo dia

todos os prazeres e mistérios

inesgotáveis

de tanto serem sentidos

abertos como a boca que aprende a sede

e nós contentes na surpresa de não morrermos

na louca corrida que era sairmos para a rua livre

éramos apenas o nosso corpo

e alguns sonhos

domingo, 21 de março de 2021

A garganta

 para medir a distância entre os sulcos

teria de espraiar os dedos um pouco

abri-los em leque numa noite de Verão

quando engoles café amargo e ilusão


sigo os trilhos, perco-me

regresso ao toque e a mim

o gesto é proibido

o tempo é um garrote


abrem-se todas as fronteiras

na ponta dos meus dedos


talvez tenhas pousado o café

talvez te tenhas armado de silêncio


un corps entier

entièrement à l'écoute


se acaso viesse a manhã

ouvir-te-ia contar

paisagens impossíveis

de conter

valor

na venda do recheio

todos os copos de vidro fino estavam intactos

as porcelanas e cristais nas suas devidas montras 

as rendas habilíssimas de todos os sábados e domingos

imaculadamente à espera 

a terrina de decoração

as garrafas de decoração

a vida de decoração

tudo conservado

imaculadamente morto


bebo um café clandestino 

enquanto espreito pelo postigo

mãos rápidas repõem o dia

tudo será destruído 

"já ninguém quer"

dizem


com as mãos sujas

abrimos uma garrafa 

brindamos ao fim do tempo


estas linhas gravam apenas

o gesto que limpou do canto da boca

a doce gota de vinho 






sábado, 13 de março de 2021

icu

fez as contas ao dia

morrerão todos os que reanimou

morreram todos os outros


limpou uma e outra vez

o que as vísceras lhe colaram ao rosto

como se entubar fosse entubar-se


assomou à janela, fechada sobre o mar

um canto longe estremeceu-o

mas a ilha não se mexeu 


mais logo não dormirá

o sono é um alento desmerecido

afago de quem é próximo dos deuses

 


quarta-feira, 3 de março de 2021

Y

 reclinado assim

nesse pouco de sono

arrancado à infância

pareces os instantes

que o Tempo deixou

perder 


um sonho curto

e revolto


no mar alto

das tuas noites