domingo, 27 de janeiro de 2013

do individualismo

é da mais profunda liberdade ir o dono do castelo viver debaixo das estrelas
e assim descobrir que elas morreram há muito no céu da cidade grande
deixando pelo caminho a luz que já não chega, que já não há
é livre de se apossar do chão em que todos cospem
de dizer o que bem quer para ninguém
é livre de todos os seus movimentos
entre hoje e amanhã, o plano é
não morrer ou
não matar

é da mais óbvia liberdade regressar o dono do castelo a sua casa




l'envol

je connais très bien l'histoire de l'oiseau qui volait
et je vais te la raconter mais il faudra rester assise
ne pas prendre les ailes de mon oiseau pour les miennes
ne pas vouloir déposer sur mes lèvres le goût du miel ailé  
ne jamais me demander de nommer cet envol puisque
ce n'est qu'un bel oiseau et sa nature dans
des phrases bien tournées et structurées
un vocabulaire précis
des mots choisis
réfléchis 

dans mon histoire, il n'y aura pas de ciel au sud ni de vallée
dont le soupçon attire le vertige au bout des doigts
il n'y aura pas la fraîcheur surprenante des rivières
ni le débordement titillant des fleurs
il y aura un oiseau et son vol
un oiseau libre 
un oiseau.





sábado, 26 de janeiro de 2013

saturnália

a coincidência nada esconde a não ser as mãos que atam
duas e distintas pontas de desencontrados fios

juntam-se deuses e espíritos e todas as coisas primeiras
mas nada podem contra as mãos que assim tocam
nos irremediáveis fios que ali se encontram

são talvez frutos de uma videira amada
porque dela bebemos e comemos

são talvez os frutos amargos de Saturno
que devagar devoramos

são todas as mãos que semeiam e colhem
que guardam e servem e o balcão onde seguros 
celebramos a eternidade absoluta desse entrelaçar

a minha mão na tua nada esconde, nem sequer
o nó que só a pele dos dias conhece
ouro, vinho e mel

sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

a dívida do trovador

partiu sem talvez saber
que nesse amor falhado
que nesse sonho findo
ficámos a haver
aquilo que é lindo

quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

a queda

de cada vez que ícaro cai desamparado e forte
nas águas muito azuis da dor, os olhos cheios de luz
alguém que placidamente passava se espanta impaciente
e a mão que outrora atirava flores ao mar num impulso de semeador 
que delas colhia sustento abundante para desfolhar os mistérios mais fechados
fecha-se na certeza da pequena pedra que as águas abandonaram e que não necessita
alimento

terça-feira, 22 de janeiro de 2013

na ilha

pertencemos ao tempo
e com ele aprendemos
a espantosa liberdade
do instante seguinte

por isso nos despimos devagar
por isso vivemos a comoção do gesto que quer dizer o antes
por isso saboreamos o alento descompassado de quem perde o pé em mar próprio

e o grito absurdo que se nos segue é ainda e sempre antes de tudo
e a maré veio mais uma vez confirmar
que naufragámos e nos recolhemos
nos braços seguros da ilha

não temos nome para nada
a ilha é desconhecida

como os teus olhos sob a sombra de uma dúvida nova
como os meus olhos que não sabem deixar de olhar para os teus
nunca os vi, como são, o que dizem, que cores tomam sob os teus que agora
me respondem?

pertencemos ao tempo
e nele nascemos





mise en abyme


coube o quadrado dentro do círculo
e sucederam-se até sobrar apenas um ponto
que é a vertigem de já não poder haver nada

fizeram-se cálculos e somaram-se impossibilidades
as portas abertas davam sempre para o negro infinito 

investigaram-se os espaços vazios e a tinta resvalada
procurou-se no aparo finíssimo do pensamento 
a impossível densidade

encontrou-se apenas e sempre
vertigem e nada

inventou-se então o amor
e saímos

 

a gota

nas formas que toma o vinho quando nos lábios desenha os rios que não subimos
corre o dia em que nasce o fogo que espezinhamos como se fosse já cinza dormida
mas ele de tão redondo, e elas de tão cheias, tomam-nos a mão que segura o copo e
brindam-nos a sorte de todas as coisas que fogem livres da capacidade máxima
da borda 

sábado, 19 de janeiro de 2013

para G. em dia de aniversário

e assim foi a travessia no silente frio branco
de uma imensa planície nocturna
trilho de luz íntima e cor nua
como se ao corpo fosse dado 
um coração-mapa 
um coração-guardião
como se à mão que  nele se apoia
fosse dado o segredo mais calado 
e os anos fossem apenas o piscar de olhos
de uma coruja velamente distraída
pelo passo redondo da valsa