segunda-feira, 9 de dezembro de 2024

Para o Ademar

mais uma vez, o rumor da partida 

no arrumar de malas e agasalhos

o rolar hesitante nos carris nocturnos

dá-nos o mote da noite e da vida

deixamo-nos para trás

por onde passamos

e rimo-nos do absurdo

de contar os minutos de atraso

haveremos de chegar ao nosso destino

como o vento

como a pedra que se deslocou à passagem

do último comboio da noite

e rolou para o infinito

que a criou




sábado, 9 de dezembro de 2023

Contagem*

já todos morreram
os muito velhos para o mundo
e os que acabam agora de nascer

vive ainda e sempre o rumor de todas as coisas
que não podemos nomear nem conhecer

o que terá sido
e virá a ser. 





* Para o Ademar, sempre.

domingo, 4 de junho de 2023

Noite no Marquês

pego no livro mais próximo e leio 

o rasgar côncavo da lua na página

e o pequeno golpe no dedo

que cicatriza o gesto

é impossível

escapar


as coisas que são ditas antes

alcança esse medo sem querer vencê-lo

apenas senta-te com ele e conta-lhe

as muitas vezes que o viste abeirar-se

da liberdade

 

passar a outra coisa

 e

a outra coisa que é sempre outra

e que sempre vem

anuncia-se com o passar do momento

e inaugura a eternidade

compomos passos

titubeamos

o oceano não se pôde abraçar inteiro

nada se pode abraçar inteiro

entretanto

já resvalou o momento

e move-se o chão

e

já não estamos aqui.

 

segunda-feira, 23 de janeiro de 2023

a companhia

o teatro acabou

depois ele, a velha chinesa

morreu medicada em casa do filho

o novo palco é agora do outro lado da cidade

os dedos dos actores tremem mais agora

as cores de plástico parecem gritar

a sua inutilidade

as cadeiras vão vagando


a incerteza insinua-se, fria,

o gesto falha o contorno do lábio

ou será a boca que já não se oferece

ao disfarce do tempo em laços e máscaras

é insuportável pensar na sala vazia

são os últimos

a sua arte é a última


na grande mesa da única sala comum

ninguém se atreve a tocar na carta solene


alguém pede ajuda com um botão

alguém traz o chá

vem o encontro no meio de todas as vozes

brilha o pó que se anichou nas rugas

é a última performance 


todos pedem silenciosamente

que os matem



sexta-feira, 9 de dezembro de 2022

kaleidoscope*

 foste um dia o rapaz maravilhado pela estrela cadente

e o homem que caía desamparado no chão da terra

e os olhos que leram e se arredondaram

e o grito que todos damos

quando tudo se acaba

ou inicia.


*ao Ademar, sempre. 

domingo, 9 de outubro de 2022

a vantagem da loucura

é não sentirmos o frio da água no mediterrâneo

nem termos embarcado com bilhete maravilhosamente moderno

é termos já ido para lá do tempo e do espaço enquanto esperamos o comboio

que nunca pára


se silvam os obuses com promessas

se gemem as mãos das crianças nos fios de ferro da última coleção

nada disso sentimos porque já fomos para mais longe de todas as novíssimas galáxias

o universo está morto mas deixou-nos todas as ilusões de herança


a terra suspira e espera


 

sexta-feira, 9 de setembro de 2022

O timbó

roda com cuidado

não é um coração

é uma orelha negra

a ouvir-te fremir


segunda-feira, 15 de agosto de 2022

Tres Esquinas

 Por pouco tempo, parecias dizer

Já se anuncia o cinzento nos teus olhos

O assombro momentâneo não te ruborizou

Mas, estremeceste, brevemente,

E agora são minhas as tuas tardes

A passar tangos pelas ruas de Montserrat


segunda-feira, 28 de março de 2022

arquipélago

talvez sejas 

como as águas do mar Egeu 

vagam em sentido contrário ao tempo 

antes de se afundarem no seu próprio sal

às portas do oriente


na casa vazia

ouve-se a noite na montanha

e as ilhas abrem-se como braços

e fecham-se como colos 

somos imortais




terça-feira, 1 de março de 2022

afloat

flutuava como um corpo esquecido

mas a esquadria revelou que era Turner 

uma aguarela de Turner negra de tanto mar

à deriva 

uns passos mais à frente

do lado do mundo que passeia 

a serpentina presa na madeira do Tejo

permanecia imóvel ao dia 

com a dureza de quem ata 

talvez pela última vez

os destinos da tarde

recuei

é preciso revisitar os passos perdidos

e resgatar as mãos de Turner

e da criança alegre no instante circular

de tirar o rolo inteiro da serpentina do bolso

dar-lhe uma coroa pagã e ligeira

uns decretos de cores

histórias por contar


quinta-feira, 20 de janeiro de 2022

γλώσσα


abre o glossário na página onde diz
que esse tom de azul
é só teu

terça-feira, 18 de janeiro de 2022

The broken nose*



are we ever brave enough

to give ourselves completely to this exact moment

that we would perish 

not knowing anything about boundaries

the borders of any gesture

the frailties of undivided attention?

life would reenact itself perpetually

extending its galactic arms around us

talking about the other Coltrane 

and the need for a change in view


what is the change that would have

stopped you from falling


it is now the time after that


the day was sunny, 

just like you. 



*In loving memory of

William Louis Mills.





domingo, 26 de dezembro de 2021

Penhasco

há na ilha um lugar 

frente a um espelho sujo

frente ao mar que afoga os seixos

entre vigílias e tempos mal medidos 

a posta restante

do teu olhar 


o que sobra da roupa encharcada

na luta de outrem?

quem beija a palavra certa

que faz Caronte esperar um pouco mais?


conto eu a história por ti

rasgando as noites

nas tuas ondas






sábado, 25 de dezembro de 2021

Conjunto de seis copos

 nunca ninguém bebeu por aqueles copos

estavam guardados para uma ocasião especial

passaram os anos e ninguém entrou para celebrar

seis cores juntas e por isso mais belas ainda

um conjunto que parecia chamar a sede

dos mais doces vinhos

soube-se que foram vendidos em perfeito estado de conservação

minuciosamente resguardados de toda a perturbação:

pó, sol e as mãos sujas 

do imprevisto 

correctos, limpos, inteiros

nunca ninguém lhes poderia apontar uma falha

(a tristeza não mancha)

(o vazio não quebra)

talvez não tenham sobrevivido depois

algum excesso, algum descuido

e o tempo

o tempo

tiveram o mesmo destino afinal

todos 


terça-feira, 14 de dezembro de 2021

Bleu-nuit

topografia de vida

sem mais nenhum registo do que

Caeiro em casa e

Penélope sem esperança


 


quinta-feira, 9 de dezembro de 2021

Ossos*

um sopro mais e 

rodopiamos no salão grande

da eternidade

o vento leva-nos 

com as outras poeiras

e nem as estrelas já

nos distinguem

na roda


nada mais há

senão a eterna ficção

e o vago rumor

da memória


mas hoje

apenas hoje

ajeitas os óculos

e estremeces um pouco

para me desejares boa viagem.


*Para o Ademar, sempre.





terça-feira, 7 de dezembro de 2021

morte em Veneza

ainda que debaixo jaza a humanidade toda
e em redor soem todas as pressas e rotinas
não o sabes já

a laguna sobe e desce sem emoção
o mundo gira indiferente
ainda que nele se agite
o tempo

o poema na gaveta vale tanto
como o manuscrito reverenciado
já viste como não duram as mãos
nem os olhares?

conheci o último humano
ontem


sábado, 30 de outubro de 2021

Branco

 Talvez não seja bom afinal

Dormir as horas todas

Em cama lavada

Dobrar as noites

Em pregas exactas

E ter tudo pronto para

Amanhã.






segunda-feira, 26 de julho de 2021

A oliveira*

talvez o espaço e o tempo sejam afinal

detalhes, arabescos de um longo e impensável logro

somos todos a borboleta branca  que veio dançar em roda 

e dispôs as pedras em círculo na pele que lhes pertence

somos a orla do mar e o fim da terra

a areia amarga e o sol inútil

quando grita a ausência


pego no cisne de louça 

e sinto a asa pintada 

intacta

intacta e alegre no seu roçar alado

da vida a começar no olhar atento da mãe


tudo o que uma vez foi

ainda é




* À memória do Márcio


domingo, 27 de junho de 2021

fluxo

que desespero o universo e as eternidades
se não registam os arrebates do pulso no corpo todo
quando chamas por mim de dentro da tua impossível distância

domingo, 13 de junho de 2021

mecânica

 esses números que a máquina devolveu dizem

que não é possível voltar atrás para afinal 

regressar ao lugar onde a vida

não se repetiu


sábado, 22 de maio de 2021

11

 enviei para Ítaca os nove anos que nos faltam

para reescrevermos o regresso

e o fim

segunda-feira, 29 de março de 2021

all night

sabíamos que éramos imortais

a madrugada era sempre o novo dia

todos os prazeres e mistérios

inesgotáveis

de tanto serem sentidos

abertos como a boca que aprende a sede

e nós contentes na surpresa de não morrermos

na louca corrida que era sairmos para a rua livre

éramos apenas o nosso corpo

e alguns sonhos

domingo, 21 de março de 2021

A garganta

 para medir a distância entre os sulcos

teria de espraiar os dedos um pouco

abri-los em leque numa noite de Verão

quando engoles café amargo e ilusão


sigo os trilhos, perco-me

regresso ao toque e a mim

o gesto é proibido

o tempo é um garrote


abrem-se todas as fronteiras

na ponta dos meus dedos


talvez tenhas pousado o café

talvez te tenhas armado de silêncio


un corps entier

entièrement à l'écoute


se acaso viesse a manhã

ouvir-te-ia contar

paisagens impossíveis

de conter

valor

na venda do recheio

todos os copos de vidro fino estavam intactos

as porcelanas e cristais nas suas devidas montras 

as rendas habilíssimas de todos os sábados e domingos

imaculadamente à espera 

a terrina de decoração

as garrafas de decoração

a vida de decoração

tudo conservado

imaculadamente morto


bebo um café clandestino 

enquanto espreito pelo postigo

mãos rápidas repõem o dia

tudo será destruído 

"já ninguém quer"

dizem


com as mãos sujas

abrimos uma garrafa 

brindamos ao fim do tempo


estas linhas gravam apenas

o gesto que limpou do canto da boca

a doce gota de vinho 






sábado, 13 de março de 2021

icu

fez as contas ao dia

morrerão todos os que reanimou

morreram todos os outros


limpou uma e outra vez

o que as vísceras lhe colaram ao rosto

como se entubar fosse entubar-se


assomou à janela, fechada sobre o mar

um canto longe estremeceu-o

mas a ilha não se mexeu 


mais logo não dormirá

o sono é um alento desmerecido

afago de quem é próximo dos deuses

 


quarta-feira, 3 de março de 2021

Y

 reclinado assim

nesse pouco de sono

arrancado à infância

pareces os instantes

que o Tempo deixou

perder 


um sonho curto

e revolto


no mar alto

das tuas noites

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2021

Passageiros

 ¡Volvamos a lo de antes!

¡Dame el brazo y vámonos!*


Em grandes letras,

Embarquemos

Espera-nos

Tudo.



* Maripositas, Francisco García Jiménez

terça-feira, 2 de fevereiro de 2021

Os malabares da Tierra del Fuego

quando gira

colorida e exacta

a bola gasta do malabar

peço à luz vermelha do semáforo

que lhe siga a rotação entre terra e ar

que proíba todo o movimento que não seja livre e belo

decretemos

toda a pressa será Injustificada 

ordem para deixar-se estar

a vida toda numa rotação

entre terra e ar

cumprimos

com o olhar calado

o fogo que nos move



Lisboa, 

cruzamento da Gago Coutinho com as Américas. 










terça-feira, 26 de janeiro de 2021

Dobra

está para começar

já terá talvez começado

o corpo lança-se pelas lajes partidas

nos largos passeios da capital do Sul

uns metros em Carlos Calvo e logo Entre Ríos

a montra grande do café alberga os habituais desconhecidos

a montra banal da loja de utilidades reconforta 

quando a respiração espreita os vales

e o corpo se lança no medo

de tudo ter acabado

mas a porta entreabre-se

move-se com os meus olhos

é aqui

o desejo todo refreado 

apura-se para dobrar a última esquina

e deixar o mundo conhecido para trás



quarta-feira, 9 de dezembro de 2020

Azul*

de zamba

azul da manhã 

em que a chuva não parou

não a deteve a estranha que me avisava

não me deteve a ponta metálica do guarda-chuva

toques insistentes de quantas Parcas que me enviaste?

seguimos, segui viagem até ao cais

repeti o passo pisando a areia do ano em que te perdi

ou a de ontem na praia da Ribeira das Naus

onde naufragam sonhadores e inquietos

azul de zamba

azul da manhã em que sabemos

que apenas passamos

y

te llevó la tarde

rumbo a su misterio


*À memória de Ademar Ferreira dos Santos,

  nascido num dia como o de hoje.



domingo, 6 de dezembro de 2020

Y

quantas vezes te fotografei o sol escondido

nos braços leves da chuva

bailando os dias

sem corpo

e quantas vezes me sentei contigo a desenhar

os dias que Goya passou em Londres

entre trevas domesticadas 

e anjos azul-mar


vens de um longe

que não sei medir

mas sei amar 


Clarão

luz

ao longe

quase fátua

que ninguém viu

assim somos todos

assim são os nomes

que os séculos sopram

e os livros graves encerram

assim as linhas de sangue 

e a fotografia de dias felizes


todos um dia mereceram uma linha 

que o cosmos sempre apaga


é noite ou é dia, tanto faz, 

tudo conspira para nos sossegar

esconde-se o silêncio, o ricto final 

e a inutilidade das esforçadas marés

o pássaro de há pouco que já não faz sonhar

os grãos de areia da tarde mais memorável do mundo

depois de ele acabar


esconde-se de quem não viveu que não havia mais vida

que aquela atenção profunda ao som metálico da passagem das horas

que nunca passaram nem voltarão a passar


luz

tão longe


terça-feira, 15 de setembro de 2020

Le Rideau Rouge*

je refais mes pas

je le savais bien que

en traversant le Canal Saint-Martin

juste après le pont

quelques pas de plus

le rideau s'ouvrait

rouge profond et flamboyant et

juste avant la grande scène

tes bras et ta joie

ta joie entière!

comme si je revenais d'un trop long voyage

comme si le moment-en-scène était là,

le roi-temps et sa reine,

toi 

et ton là-maintenant

de grande magicienne


Mesdames et Messieurs!

voici le mystère.



*À la mémoire d'Angélica Chemla.


segunda-feira, 7 de setembro de 2020

Orfeu

há um espanto nos velhos 

vêem redonda a vida que estava ali

o casaco desordenado num canto se

tivessem entrado sem perguntas em alguém

a cicatriz de uma queda no mais belo penhasco se

tivessem aberto o mapa como uma criança

os olhos cansados de não dormir se

tivessem ido até ao fim do medo

o fim das amarras

o começo da viagem 

e da nuvem que baila os ventos

se


segunda-feira, 31 de agosto de 2020

The End

 não saias nunca antes de todas as luzes do cinema se apagarem

nos créditos está o nome da canção que te salvará 

e quando tropeces na certeza de que já não há nada mais a fazer ali

esse minuto a mais, é esse que a morte te desconta por distraída

com o que farás ainda numa sala onde tudo já acabou

quinta-feira, 27 de agosto de 2020

Moldura para T2 com vista

quantas gerações durarás, talvez três
talvez dures um feito único 
alguma história que alguém repita e repita
um gene reencarnado na poeira que levantam os meus pés 
ao pensar-te

tudo o que guardas com amor é já pó
toda a memória é já ficção
tudo já foi

quinta-feira, 13 de agosto de 2020

Fonte

 estava inscrito no cântaro que sim

que se pode sentir de todas as maneiras

pegar na asa e sentir-lhe o barro sujo da fome

beber a água fria e desejar o sal lá longe

seguir a gota que se escapou dos lábios

e perder-lhe o rasto rapidamente

com o cântaro pousado

despem-se devagar as mil maneiras

de nos emparedarmos

as frases fósseis e a certeza morna

o mundo-lego triste da infância sem liberdade


a gota desapareceu toda no mundo em mim

humedando o eterno senso

da vida

segunda-feira, 13 de julho de 2020

Sobras

reconheço o cartão que o sem abrigo avalia com cuidado no lixo
pedaço irregular de papel prensado que acolhe e conforta
é a mesma hora e a mesma brisa e a mesma noite de Verão
recolho as palavras que ainda sobram para comer a dor
e entro dentro de casa.

sábado, 4 de julho de 2020

877


essa parte do teu sal que não se perdeu e entrou em mim
essa parte de mim que não se perdeu

coube-nos essa sorte
e este fim.

quinta-feira, 2 de julho de 2020

lama

o precipício tem lugar para todos

campa rasa e modesta

de pó e chuva

a verdade no declive

o sentido no embate

depois, é tarde

sexta-feira, 22 de maio de 2020

Dez*

somos tantos e tão iguais
conto-te ou não?
os que ainda estão
fazem contas à vida
apanhados na globalização
do silêncio e o do espanto
confinados ao momento
e à condição

a partir de hoje
conto-te ou não?
já não me chegam os dedos das mãos
para dizer a tua ausência
já não me chegam as saudades para tirar-te
do fundo de todas as coisas que rasgam a calma

conto-te
tudo é o mesmo ainda
mas mais calado
mudos a olhar o passado
e nem o diabo nos quer a alma
nem os deuses nos querem criar

a partir de hoje
dizem que tudo mudou
na passagem do momento
conto-me a mim
e a ti


*Ademar Ferreira do Santos, 9/12/1952 - 22/05/2010





segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

Meio do caminho

retroceder
meio movimento
como faz o comboio
quando vem atrás antes
de se lançar no ferro seguinte
metade de tudo se assim se lançasse a vida

retrocedo, sigo
sigo no encalço do que foi
passos perdidos cujo rasto serve de síncope
metade de ferro e sonho ou de corda, dizia o poeta

até onde se prolonga a curva das linhas da tua mão
a avisar-me da cena que Pasolini não pôde filmar

páro
no meio exacto de tudo



Para o Ademar, no nosso dia.


segunda-feira, 16 de setembro de 2019

o trâmite

absolutamente ilegal e
supinamente inconcebível
que se arrastem assim as asas
do olvido
como corpos celestes amargos
que depois de vagar imensos
se detivessem
no raio de sol fortuito
que nenhum deus a si nega

a noite é eterna e
há apenas um caminho

o dia é dos deuses
e deles são todos os édens
e neles moram as histórias
e o caos do mar
e da memória

o trâmite é simples
as asas levam o olvido
no bater imperceptível
do tempo-mundo
na noite que é eterna
no caminho que é único

não há registo de
humanos desvios
nem cartografias
do perdão

apenas aos deuses
se lhes permite regressar

insuportável portanto
ilegal, inconcebível!
que se encontre
essa linda pena
vagante

assim perdida
no universo



quinta-feira, 6 de junho de 2019

mensagem

por vezes
demoro-me
não abro logo
fecho os olhos
sobre a boa nova
na carta fechada

as bordas correm
para os meus dedos

e deslizam pela memória
inacabada

quarta-feira, 22 de maio de 2019

9*

a tombar
só a pétala leve do jacarandá
ou a roupagem da normalidade
um corpo inteiro de sede, não
um corpo inteiro de ser, nunca

quem te roubou sabe 
que nada sobra
que nada fica

caminhaste para lá 
dos dias
da bela noite
segues sozinho comigo
cozinhas com a minha fome
e bebes dos meus sonhos
e não há truque que não tentes
para me fundear os olhos no horizonte
caravela íntima 
cego tropel 

o sol dobrou a última linha
grão-luz apenas antes
do eterno olvido


* à memória de Ademar Ferreira dos Santos

quarta-feira, 1 de maio de 2019

dia primeiro

ao cravar-se a garra
recolhemos o corpo no
doce silvestre
de ontem
rasto silente
nunca anunciado

corremos os dedos
por toda a história
todos os antes e depois 
de absolutamente tudo
e nunca achamos
a garra que sem memória rompe
a vida toda

nas mãos
o sangue que assoma
a pele rasgada
o momento 

sábado, 27 de abril de 2019

improviso para resgatar Alfonsina

és exactamente como a onda que
incessantemente me leva
a ser todo o mar