segunda-feira, 17 de dezembro de 2018

los perros

adiantei-me meia hora
não importa ao que venho

troco a carta do coronel
por trinta minutos de ficção

troco a história de um país
pelo coincidir das nossas mãos

abrimos uma pizzaria apenas
para podermos mandar os convites

Amanhã, A Grande Estreia!
Amanhã, Começamos

tudo nos é dado desde agora
permitido, por meia hora

chamamos os cães
montamos os cavalos

está uma montanha inteira
há meia hora à nossa espera




domingo, 9 de dezembro de 2018

Da tua viagem*

para que iria invocar anjos ou estrelas
se passas num rumor de ferrovia
como a saudar-me de perto
a distância que sabias
desço, desta vez,
deixo que o comboio vá
deixo que me peças que fique
e troco as voltas ao destino
falo-te da passagem pelo Atlântico
do Inverno porteño
da seda a roçar o punho aberto
voando numa sala em Montserrat
da felicidade totalmente inútil
do sentir-tição
as marcas vivas que Camões não vê
Montserrat,
Barrio del Mondongo
sabemos que todo o conhecimento
é inútil, que pôr nomes às coisas
é inútil como já não estares
é não saberes 
que estremeci quando passou o comboio
sem saber em que carruagem te encontrar

* Para o Ademar Ferreira dos Santos
 9-12-1952(-22-05-2010)



sexta-feira, 7 de dezembro de 2018

Porcelana e papel*

traduz-me isto
que nunca se faça tarde
para subir de novo a montanha
e uma e outra vez reconhecer as árvores
o estranho corte redondo na encosta
e a casa que habita os sonhos
e de onde se parte
sempre


*para a María Alonso Seisdedos

domingo, 2 de dezembro de 2018

18, calçada de santa apolónia

caravela, barcarola
rumo certo e acabado

água mar
pedra mágoa

sal granito
sonho largo

roda do leme
rosa dos ventos

aonde me levas
se aqui me tens?

domingo, 4 de novembro de 2018

Transfusão

abro uma veia na terra
e outra em mim
os caminhos
sabem-no

ouve o sulco que se forma
à passagem do rio
por essa terra
rasgada

seiva lenta 
demorada

língua quente
nos teus braços
no teu pulso

ritual conhecido
de quem sente que o tempo se aquieta 
para ver melhor
quem o toma

golpe fino e doce
como romãs

veio húmido e doce
como romãs

coração ferido
de vida






























sábado, 3 de novembro de 2018

Osso

olhos-oceano
corpo-árvore
alma-forte

mil anos mais
não me perguntes
mas são mil anos mais

quebra a vida num instante 
de pleno sentido
assim és, sou

quebra e abre um nicho
onde só cabe o fogo imenso
do começo

quebra e une-se
como as mãos que juntam
pedaços caídos de porcelana rara

mil anos mais
nunca me perguntes
mas são mil anos mais 



sábado, 27 de outubro de 2018

el agujero


janelinha pequena
umbral onde repousavas
a alinhar imperfeições
como para caberem
na mala do olvido
ou
som que parece água
de um céu clemente
de nuvens e vento
azul-sol
sem religião
ou
ver-te sempre
em tudo
todo







segunda-feira, 22 de outubro de 2018

El Vals de Tanturi

emigrei apenas para poder dizer golondrina
emigrei apenas para te ouvir dizer golondrina
modulamos timbre e saliva e aproximamos os lábios

terça-feira, 16 de outubro de 2018

ponto e linha

a liberdade seria sair à rua neste preciso momento
e não regressar a nenhum lado nunca mais

segunda-feira, 8 de outubro de 2018

No fim do mundo

empunhavas um simples quadrado de seda branca
um quadrado livre e redondo como a queda da lua
nos braços da manhã, quando a luz se insinua
por dentro dos medos e os faz enfim
descansar
nada resiste à certeza da manhã
nada resiste ao gesto breve
de começar
as palavras nascem
e olham-se pela primeira vez
e levam nelas o corpo todo do tempo
que as cala e encerra dentro dos teus lábios
como numa arca que eu pudesse completamente abrir e
saquear
acto único de pirataria selvagem tantas vezes repetido
até ser acto primeiro, final!
o sal imenso dos teus lábios
mudamente nos meus
não cala nada
não esconde nada
saqueio o que posso, mas fere-me a luz da seda branca e 
rasgam-me a pele as arestas das pedrarias que roubaste sem piedade
e o sangue sabe-me ainda a mar e aos teus olhos no leme de não sei que vida
fecho os olhos e abro as mãos e de novo me surges como o dia novo, a ilha clara
talvez se esperar a manhã se acabem as palavras e o tempo nelas e nosso

devolvo-te o quadrado de seda branca
borda-lhe, se queres, a realidade 


segunda-feira, 1 de outubro de 2018

La certitude

paira, pousa e desaparece
em voos inexplicáveis
levando-nos

eco perdido
no fundo de nada
ainda que a tua boca
me grite mansa o contrário

ce jour-là...

ainda estou para saber
como reúne a tua língua o espaço
e o tempo que certeiros nos acabam


quinta-feira, 27 de setembro de 2018

Passagem de Alfredo Ábalos

à sede que se enreda na voz
às cordas que lhe gravam fendas,
às penas, caminhos e omissões, 
saúde! 
tudo isso fica do lado de cá da porta
onde os rios correm com o cio
de sempre chegarem ao mar
abismo de sentir em copla
o que não pode tardar

terça-feira, 11 de setembro de 2018

Âmbar

dezassete dias passados
agosto inverno
três meses
depois

o pátio

receberam-nos um gato e
um manequim quebrado
por entre ramos verdes
de não sei que
primavera

a sala era azul
de um azul anoitecido
na memória del tiempo aquel
quando a moldura não te encaixotava
no pó vago dos lugares altos e inúteis

e não sei em que movimento das horas
se voltou a encher de azul a sala
mas de um azul âmbar
nicho-fonte que me albergou
na curva abismo da noite
na curva abismo do caudal
nascente como
resina

hoje recebem-nos no pátio
um coração-insecto
e os rios frescos
do olvido















segunda-feira, 10 de setembro de 2018

No Fim do Mundo

é ainda terra
a última que piso
antes do mar eterno
é ainda dia, o sol que baixa
e nos revela juntos na espera
lento Outono, feroz Primavera

caminho pela terra do fogo
com a cadência que me deixaste
um instante de cada vez
uma vida de cada vez
impossível sul

baía adentro
último adeus dos yagáns
ao poder dizer refúgio
cálida maneira
calada maneira
de te saudar



terça-feira, 21 de agosto de 2018

Farol


rocha e mar:
despedacemo-nos

lá longe
vaga incerto

o mundo




segunda-feira, 20 de agosto de 2018

o bandoneón tem as cordas
do sangue que nos move
a pele fremente
esperando
a tecla

quarta-feira, 15 de agosto de 2018

Impermanência

Despojar-se completamente
E era o começo de tudo
Ou um tiro final
Também serve
A saia de seda desliza
Uma única vez até ao chão

Casulo asa 
Mulher

Desliza o chão e a noite
Por fios de uma seda eterna

Que importa, quem conta
Se calamos ou dizemos

Asilo-nos num país improvisado
E desfias-me as fronteiras

Golpe finíssimo
A fingir de carrasco

Proclamação surda
Primeiro dia da derrota dos dias

 Memória desfeita nas tuas mãos

Tudo acabou
Chão larva momento

Por isso te conto 
Sempre novo

Desato o nó
Desliza a seda

História de um país mulher





terça-feira, 14 de agosto de 2018

Tormenta

Não é que não ame as bagas grossas de chuva
e as fendas de luz que rasgam a noite
mas como se atreve a natureza
a pôr-nos assim
em palco!

segunda-feira, 13 de agosto de 2018

Pela viajante à janela passam os rios largos da experiência 
Caudal voraz ou mansa e perdida folha
Tudo neles cabe
E nos basta

Humedecemos os lábios e todo o sal nos sabe
Ao ondular do sol no rosto
A viajante fecha os olhos
E rema.

domingo, 12 de agosto de 2018

49*

Conta-los um a um
Compasso de sangue
Espera lenta
Matriz mãe
Amarga

Desse sangue cantado
Sobram-te as veias e a garra
Noites a querer guardar o tempo
E bordas de tangos que mal aguentam
As mil quedas em que te precipitas

Desse arresto tentado
Sobram-te os voos redondos
E o passo amoroso em 4 ou 8 ou 16
Que o mestre sempre te quis livre
Tempo de um mate quente
Que se sorve lento

Ideia inviolável
Um corpo inteiramente vivo

Matéria breve
Célula mãe
Nascida

Dia arrebatado às cinzas,
Este


*Para Jorge, depois do transplante.

sexta-feira, 10 de agosto de 2018

Peito
Proa
Barco

quarta-feira, 8 de agosto de 2018

No espelho

de tão lenta, fugaz
sem antes nem depois
esta é a história de uma fotografia
instantâneo de vida por revelar
em película pele

segunda-feira, 6 de agosto de 2018

vão-nos deixar sem nada
vão-nos tirar o pão da boca e a boca e o pensar nela
e os beijos que matavam a fome e geravam motins
e o motim maior que devora o pensar e o saber
e fica só assim a sentir a destempo
e o tempo, o tempo
o tempo

ontem
ou noutro dia qualquer
passei em frente do Coliseu
o concerto tinha definitivamente acabado
a rua e as paredes estavam miseravelmente sombrias

e ontem, ainda ontem, abri devagar as tuas mãos por nelas
vagar o sol

é pouco, tão pouco, fui apenas o movimento redondo dos teus olhos
quando ao chegares
parti

não nos vão tirar mais nada.

quinta-feira, 26 de julho de 2018

Desde El Alma*


o momento vaga perdido
roda como quem quer voar
e assim redondo se lança num vals
que os meus braços não deixam acabar

só isto te posso prometer ainda que
já não saibas durar

mas há ainda chão e o maestro
ainda nos sabe escutar

sigamo-lo no vals perdido
prestes a começar





* À memória de Nicolás Ferreira, no dia do seu aniversário.

sábado, 21 de julho de 2018

navegantes

estremecemos
entramos na curva do vento
passamos por entre cortinas
de água e lábios de sal
a terra desliza inteira
e nela alamos
desvios
talvez nos percamos
da rota imensa
talvez a seta
seja o anzol de um pescador
que ilumina a noite no Ginjal
talvez a parede roída de tempo
nos ampare a queda mil vezes
calço os sapatos cor-de-poente
e entro na curva do vento
estremecemos

segunda-feira, 16 de julho de 2018

prestidigitadores

nas suas mãos
há apenas ocaso e olvido
a eterna corrida alegre passando
o umbral de todas as manhãs
no horizonte sempre além
no horizonte de toda a vida
ser um pouco mais à frente
sobra um passo
o próximo
sempre


poema póstumo

bani lembranças 
corri a memória
abro a janela e o livro sem medo
não me vens deitar a cabeça no colo
não me vens deitar a cabeça no colo





quarta-feira, 4 de julho de 2018

da pertença

pouco se sabe 
do poder que tem um verbo
de mudar o caminho das marés
ainda menos se sabe se aquele pouco de som
que assistiu na difícil tarefa de propor aos lábios
que algo é dúctil
ou fero
sobrevive ainda às amarras da língua tua
no corpo mundo

Sur

talvez os gatos tenham sete vidas
pássaros e gente têm
apenas uma

voo único
de um céu rasante

volta sem memória
ao princípio de tudo

toda a vida
toda uma vida

tempo de apenas deixar
que a areia escorregue
por entre os dedos

até ao chão


quarta-feira, 27 de junho de 2018

O anel

o extraordinário punho 
apoteose e fim 

creio no rosário
contas de pele

fantasia redonda com
deus de permeio

saqueaste o mar
ferreiro e forja

e eu prata
sopro

corte fundo
corte fundo

estamos ainda
ambos no mundo

na terra húmida dos
sonhos enterrados

travessia cega
mar nocturno

recolho-me náufraga
chega-me o teu eco

se nascesses agora
apoteose
e fim





segunda-feira, 25 de junho de 2018

Garras



era assim que começavam as linhas
que não cheguei a escrever
rasgava setembro
cinco dias
inteiros




domingo, 24 de junho de 2018

monarca

acabou-se a música
arrancaram o chão
todos se foram
sobra um acorde
que nada cala
tríade menor
de dois
dentro

lá fora
os corações pequenos e os notários, juntos
conferem gravemente da inutilidade de assim bailar
pois não há música nem chão nem nada que nos justifique
e nem o confessado assomo do amor aos lábios que tudo estremece 
basta
decretam o fim da memória 
e do seu esquecimento

insisto
houve um chão
houve música
houve gente

lá fora
recolhem diligentemente as flores caídas
retiram as coroas e os laços para um lugar conveniente 
onde tudo será cinza depois da última porta fechada pelo lado de fora
calada alquimia entre fogo flor e lágrima
dentro
a homenagem acabou
decreta-se o retorno
ao real

lá fora
o voo transatlântico da borboleta
cruza com espada de ferro as vossas crenças

quarta-feira, 20 de junho de 2018

Borda

sucessão e ordem
passam os dias

(aquele momento
engoliu o tempo todo)

sucessão e ordem
passam os dias


Trasnochando


vem o teu passado ter comigo
num gesto mal medido
num golpe fero

interponho-me

atrás, a máquina do tempo
coreografa tudo

peço a palavra
por um ausente

gesto breve
que te cuida

abro a arca
corpo fechado

houve um tempo
em que te esperava
as veias abertas em teu nome













quarta-feira, 13 de junho de 2018

Legado*

que importância tem o depósito sentimental
das coisas a que chamo tuas?
amanhã virá o executor
reafirmar que já não és
dono de nada
tudo nos foi legado, repartido em
tecidos vivos de memórias
histórias e sentir
o corpo amargo
o corpo amargo de
não sentir a vontade do teu
também ele nos foi legado
omphalos a quem faltasse
o cordão original
corte inútil
marca tua
eu, que te criei
tu, que me nasceste
somos parte eterna de tudo
e seremos ouvidos
convoco o executor, o carrasco e o criador
para traçarmos juntos o plano destes trinta dias
a mais
faço ver que a roda que movíamos ao contrário do tempo
pode agora avançar e que te espero no Goya às seis da tarde
sujeitos ao céu aberto e à terra fremente
sem mais abrigo que o querer

rejeitamos mortalhas e milagres
trinta dias é um breve estremecer
nas cordas eternas da vida

fecho-te os olhos com os meus
amparo-te a queda
recebo-te





*poema para refazer o dia 14 de Maio de 2018,
para vos.






segunda-feira, 11 de junho de 2018

Chico

são muito azuis, os olhos que não vi
é nossa, a cidade maravilhosa
submersa nos futuros amantes
que não sabem que nada
é p'ra já
tomo-lhe as palavras
levo-as a tempo
nós sabemos
tudo já foi
tudo será
caem milénios
neste momento em que
não criamos nada
recebemos tudo
poemas azul-buarque
lenço azul-amante
que deixaste cair

sábado, 9 de junho de 2018

100 metros

começaste a não estar há tanto tempo
que o momento exacto de não estares
parece-me aquela imperceptível aceleração
que faz com que apenas um ganhe a corrida
corremos todos atrás de ti e reconhecemos a tua vitória
ficámos para trás e agora andamos a passo a recolher os possíveis
talvez te lembres que te dizia ter começado a entender passos e rotações
talvez tenhas entendido que toda a felicidade está em começar e nunca em ganhar
ainda assim,
aceleraste.

teoria de tudo

ao encontrar todos os valores possíveis
resolvo a incógnita, reponho a verdade
x igual a tudo o que é possível
x igual a si próprio
x nada

depósito de ossos e sonhos
a terra resolve todas as equações
na mais perfeita e longa igualdade

a alma cabe dentro de um saco plástico
o anseio cabe todo dentro de seis letras
a vida é um rio que se ri à gargalhada
das nossas reflexões na margem
sábios de calças arregaçadas
ponderados no sofreramar

jodorowskys a martelo
joderowsky para os pobres
olhos redondos de quem diz
que anda por aí uma incógnita solta
e a cala para parecer mais alto quando anda na rua
x não é igual a um metro e talvez oitenta de jactância

muito mais gosto, ó terra, de quem sabe
que nunca houve mais nada a saber
vão, vêm, estão

= matar-nos
          há



sexta-feira, 8 de junho de 2018

paisagem

apoio a minha vida no torso que me recebe
faço-lhe frente e respondo-lhe surdamente
a partir daqui é só caminho e juro-te
atravessámos montanhas
não to disse ainda?
regressa.
torso corda larga de guitarra antiga
os teus dedos na curva onde começa o corpo
consolo breve por sermos dois
chamamento perto 
esteio
torso esteio largo
encosta e precipício
regressa.
sei que um pouco mais à frente
de golpe, sem aviso
a paisagem muda
tangente de dentro de não sei que demónio
raso a parede cheia de falhas agrestes
e a montanha segura de há pouco
é agora rocha impassível
e vertigem
regressa.
do sangue não nascem flores
e se nascessem seriam rosas carne
espinhos arrependidos de todo o mal
sonhos fulvos de uma manhã de outono
ainda intactos
regressa.






terça-feira, 5 de junho de 2018

rogo a memória alheia
que te traga até mim

eras muitos
quero que sejas mais

desses pedaços faço história
que gravo nos olhos de quem me olhar

pouca gente o sabe
mas vivemos tudo sempre

bastou que uma vez
o tivéssemos sentido

mas rogo, sim, rogo,
a memória alheia
que te conte
mais

neste eterno baile
preciso ainda e sempre
que sintas comigo
que sintamos juntos
os acordes de um passado
que vivemos, que temos de ter vivido
cada vez que caminh⧜mos
ao contrário do tempo

só mais uma vez

contame



segunda-feira, 4 de junho de 2018

antes de atravessar (dia de sol)

não imagines nada
a vida é a exacta sensação
de um momento


domingo, 3 de junho de 2018

passaste todo para mim
e assim te levo dentro
mordo os lábios
e o teu sangue
escorre-me
puro sentir
mais nada
mais nada
















sábado, 2 de junho de 2018

Epitáfio

ir apenas quando se acabassem os sonhos
ir depois do último desejo
ir sem pena

tenho o teu epitáfio por escrever
teimas em viver

escondo a data e baralho as horas
entro no comboio de madrugada
entro na paisagem onde estás
os monstros são claros
deixam-se acariciar
penso que talvez seja
uma estranha passageira
que se levanta a meio da viagem
e sonha que sai do comboio em andamento
para entrar no gelo branco e quente do desconhecido

está gente à tua espera
faltaste ao ensaio
e ao dia

há quem encerre desejos como se fossem portas
há quem guarde sonhos com papel de embrulho
há até quem deite fora as penas
às segundas, quartas e sextas
junto com o lixo doméstico
indiferenciado
e diga ele
e não tu

a gente que te espera
guarda o tempo que te faltava
para chegares ao fim de todos os sonhos

não se escrevem epitáfios com fios do real
bem atados a quem somos
aqui não jaz
ninguém



















quinta-feira, 31 de maio de 2018

Ara


as palavras carregam
a madeira que pisaste com todo o sentir
e o gesto brutal que no-la arrancou
rasgo dentro de mim o verbo
que a reduza a pó ou
que a guarde

as palavras carregam
o incenso que sobe até ao Sul
e o altar onde não me deito
rasgo dentro de mim o verbo
que cale a missa de um ou
que te cante

as palavras carregam-nos
peso-mundo
vão



Herança

coube-me em sorte
cruel quinhão
3 começos

Cartografia

assoma já a onda que nos vai quebrar a todos
por isso, navego calmamente contigo

não me chegou nenhuma data
nada sei desse mar por vir
não me preparo

um dia
visitou-me nitidamente 
a tua futura ausência
corria a madrugada
e nela chegava a
presença audível
do teu abraço
no meu peito

assomava a onda que nos vai quebrar a todos
convoquei Magdala para que nos afundássemos juntas
na voz de Laborde lobo náufrago eterno

cabeça simplesmente na almofada
adormeci

não me preparei
não sabia

acordei num dia completamente novo
e rodei o compasso pelo gozo da roda

assomava-me o teu nome aos lábios e aos dedos
temos todos a mesma idade nesse primeiro dia

meço a onda pelo cruzamento de distâncias
concluo que nos afogamos

nascemos no mesmo mar que nos há de quebrar

la última noche
el punto final

rodo o compasso calmamente
posição estimada
adentro




terça-feira, 29 de maio de 2018

20 watts


reparaste
o mundo encolheu
o mar secou

o coração
besta mecânica
galopa sem freio

debate-se
não entende
paredes brancas

agarra-se
ao seu próprio som
dança ainda uma vez

e esperança-se

descremos os dois
reparaste
do fim

mundo rochedo
fio de sal

os físicos postulam
que o meu tempo e o teu
existe existiu existirá

descremos todos do fim

o coração
besta mecânica
galopa, desmedido

e esperança-se

mundo grão
gota

nada a fazer
dano irreversível
máquina desligada
off

por 20 watts

o coração
grão
gota





domingo, 27 de maio de 2018

Salavina

espero pacientemente
que o piano de Ariel Ramírez
nos não acompanhe assim
nos não fira assim
boca de mar imenso
engolindo o correr dos dias


El Maipú

mudaram o chão onde caminhavas
a madeira guarda tudo, como nós

tábuas de prazer e mágoa
pedaços de vida

entram os moços inocentes na sala
vêm recolher o que é apenas chão
rasgado e irregular
não serve já
não sabem
ainda bem

carregam tudo rapidamente
não há tempo a perder!

não há tempo a perder
temo-lo ainda todo

pedaço-chão
inteiro

sábado, 26 de maio de 2018

palavras roubadas em contra-mão

viví
para que esta pena
desaparezca






quinta-feira, 24 de maio de 2018

só assim se pode dizer:
morir de amor

morrer de morte lavrada em auto, não
morrer de homenagens derradeiras, não
morrer de lápide e fotografia, não

afasto todas as mãos que não te cuidam
mordo quem de ti se abeire de cara tapada
escorraço coveiros e comadres
mato os abutres
convoco deus
o teu

digo-Lhe
morir de amor

era esse o único plano
era esse o único plano!
depois, um dia, sim, morrer apenas
da morte de decidir a cor do caixão
da morte que guarda relíquias em gavetas
da morte que chora, recorda e depois esquece

morir de amor é a única morte possível
a única que sabíamos
a única que dizíamos
tempo adentro

digo-Lhe
este é o nosso mistério
nunca O alcançarás








terça-feira, 22 de maio de 2018

Improviso para te levar ao baile*

viajo para a frente
estou prestes a ler o improviso
que arrancarias destes estranhos dias

vou a tempo de te dizer que não é verdade
que me fuja sempre o pé para a dança do adjectivo
vou ainda a tempo de te contar Paris de luz apagada
Paris sem Prévert nem Blake
cegos ambos para olhos de mar que me tragam
songs of innocence and of experience
Paris sem tangos cantados a meio da tarde no boulevard
incessantes partidas e portas fechadas

estou a tempo de te contar
e esperar pelo que vais tecer
que andei pelos cantos do Sul
que saberias reconhecer

excepto um

o nicho perfeito, a pele quente
o compasso de espera
antes





* Para o Ademar Ferreira dos Santos
   09/12/1952 - 22/05/2010
 


segunda-feira, 21 de maio de 2018

7 noites

ainda não

nesse dia (pela manhã?) acordaste
como todos os dias
e levantaste-te
corria o massacre em Gaza
escreviam-se poemas sobre o massacre em Gaza
escreviam-se poemas sobre o violentíssimo desaparecimento da Realidade
faltavam palavras para falar dos que tombavam
a menos que nos explodisse o peito
nesse dia corria o dia de hoje
a Realidade avisava
esse dia é hoje
recebo os pedaços do teu peito
recebes tu os meus
no mundo possível da manhã do dia catorze
recuemos um pouco
treze de Maio
tranquila me dizia
se me tivesse inquietado
se me tivesse pressentido num dia como o de hoje
se me tivesse prevenido com as teorias e postulados dos Mundos Possíveis
e te tivesse gritado para não me deixares ver o dia de hoje vinte e um de Maio?

se pudesses ver como o princípio do tempo se parece tanto com o seu fim

a rapariga com olhos de caleidoscópio que encantou os alunos esta manhã chama-se
Lucy (in the Sky with Diamonds)
o Miguel que veio da Galiza, como a María, dá-me versos sem querer, pão amargo para a boca
daquele mate parecido com o gosto da tua língua na minha
na camisola do petiz enamorado esta manhã lia-se LEIBNIZ em grandes letras nas costas
ainda o filósofo a rondar-nos com todos os seus mundos possíveis às costas
e nós que lhe damos razão porque
ouve:
como teria Leibniz imaginado que chegaríamos aqui
a este amargo dia sem mate
sem ti?



 

domingo, 20 de maio de 2018

Arresto Doble

bailavas essa redonda privação da liberdade
sempre pela última vez
cerceando a minha
rodeando o meu espanto
com afagos que queimavam

caminhavas como quem grita
coroavas como quem ama
para logo te afastares
tímido agora

tantos e tantos anos de palco
e a modéstia inteira

mas onde quer que eu te visse
aquele chão era teu
todo teu

a liberdade era minha
toda minha

arresto doble, corazón






Nombre

ya lo sabés, escribirlo, escribirlo hasta que se vaya!
al diablo la calidad y la métrica!
al diablo la ortografia y el idioma!
Todo es bueno, todo sirve
cuando comprendemos
un corazón
el tuyo
todo se hace claro,
bonitooo!
te encuentro de tantas maneras ahora...
vos sabés
y sabés como de un verso al otro
todo cambia
así que ayúdame a escribirlo
hasta que se vaya
a cuatro manos y un corazón
hasta que se vaya la nube de hierro
este horrible descompás
que nunca previmos
te sabía ahí y
a veces me iba
porque te sabía ahí
a veces me hago hoja cuando sopla el viento
y sigo caminos que son solo mios
otras veces me nacen raíces
que nada arranca
que miedo nos dá, a los vagabundos, un solo lugar!
ese lugar onde estás vos, es libre?
se puede ser hoja y arból al mismo tiempo?
hay buena sombra, largos caminos y buen piso para ronda de dos?
y se puede imaginar, creer en otra cosa y entristecer un poco alguna vez?
de un verso al otro, todo cambia
se me olvidó, perdona
siempre estabas
siempre estarías
y ahora hago preguntas al caos
hasta luego, solcito



sábado, 19 de maio de 2018

quadra viva

não se sabe desde há quanto
se choram os mortos assim
tacteando o mistério
adiando o fim

Uno



deixámos o ver e o ouvir
e fomos em busca desse sentir
que Marino canta como perdido
que Marino canta como perdido
apenas para que o vamos buscar

Prece

quantas vezes te disse
todo o tempo do mundo
era a nossa medida
mão-cheia de tudo

temos todo o tempo do mundo
teremos todo o tempo do mundo

não era soberba, nem desafio, ó Deuses!
não era menosprezo pelas vossas sábias leis
que rodam e rodam e rodam sem olhar a quem!
era outra coisa
era a nossa lei
a única lei das mulheres e dos homens que se encontram

sentem-se um pouco
larguem as setas e as rodas e vejam-nos bem
o que seria de vós sem os nossos corpos e emoções?
o que seria de vós sem as nossas promessas e esperanças?

poupem a roda a quem está por Eros ferido
poupem a roda a quem o reconheceu e escancarou o peito!

prometemos nada dizer.














sexta-feira, 18 de maio de 2018

Nico...

a outra ponta do laço
tinha-la tu
se soubesses o que custa
tenho a certeza que voltavas
tomando mate no pátio da casa
voando em zamba ao meu encontro
e depois juraríamos de novo pelo presente
o mais sagrado de todos os tempos nossos
tempo do sentir
tempo do querer
é absolutamente inútil pôr em verso
o que a morte nos roubou
nenhuma palavra chegou para dizer a felicidade
nenhuma palavra chega para dizer a perda
eu não tinha outra ambição
queria apenas não morrer
antes de te voltar a ver

não sou capaz de entender o que significa
já não estares
se eu estou

Al Compás


cada vez que lata mi corazón
latirá el tuyo



quarta-feira, 16 de maio de 2018

tempo inteiro

há uma canção árabe antiga que se parece com o teu silêncio
espera devagar que as cordas desenhem
nos dedos do tempo
as minhas mãos
no Goya
às 6




segunda-feira, 14 de maio de 2018

A Inauguração


chegámos ao fim dos tempos
explode-me o peito de não ter palavras
que te levantem para que ouças que afinal
a pedra da injustiça não ergueu paredes
a bala silva só a canção do surdo
e nunca a nossa
nós, os que ouvimos
nós, os que sentimos
amarga-nos o gosto do metal e
sangramos quando feridos
a lança ou palavra
pesa-me que não te levantes
queria dizer-te que sinto os lábios secos
com tanta poeira da história
sei e sinto o gosto do sangue
de quem ainda fica um pouco mais
e se despede devagar da ilusão do chão comum a que chamamos humanidade
mordo os lábios devagar e desfraldo a única bandeira a inaugurar
o único lugar soberano, chão de mar e vento
que nunca mais poderei nomear

cai o pano largo


Gaza-Lisboa, 14 de Maio de 2018

sábado, 28 de abril de 2018

El Faro

contame
conta-me como são os caminhos
que ligam a rue du temple
a villa urquiza
decime
diz-me que compás
é a palavra-medida perfeita
para quem tragou o mar todo
e agora orienta a mão de apoio
para o coração quente quando nevava
e os olhos perdidos para o pássaro de prévert
acordate
conjuga-nos só em tempos verbais 
que caibam na rosa-dos-ventos
volta completa de horizonte
em busca de sentido

abril-sempre.